quinta-feira, 12 de abril de 2018

Veneza




Passados 15 anos, regressei a Veneza. Desta vez, causou-me uma impressão muito profunda que se prolongou oniricamente, e até ousei um passeio de gôndola. Talvez que aos 20 anos eu fosse demasiado insensível aos encantos de Veneza. Ou talvez seja uma daquelas cidades que, como o amor, se aprecia melhor na maturidade. Não faço a menor ideia. Enquanto não encontro esclarecimento, vou deambulando pela imensa literatura de viagens dedicada à Sereníssima, ou seja, ainda que de maneira estética, prolongo aí a minha estadia.

A cidade muda totalmente de noite. Uma das mais animadas que conheço durante o dia, quando o Sol se põe tudo desaparece ou se fecha, e à medida que as horas avançam Veneza vai ficando cada vez mais deserta e mais possuída pelos sons individuais. O ruído dos passos cruza-se com o bater da água e a aparência de cenário de qualquer recanto acentua-se, pois nenhum cenário o parece tanto como quando não tem acção e está vazio. Mas o que na verdade faz mudar Veneza é a própria escuridão (…). A água é o elemento fundamental da cidade, o que de dia devolve e potencia a luz e a cor (vermelho-sanguíneo, amarelo, branco) das casas e dos palácios. De noite, pelo contrário, quase nada devolve. Absorve.

(…)

Do seu extremo ocidental ao seu extremo oriental (a maior distância possível), Veneza percorre-se em não mais que uma hora, a andar bem e sem se ofegar. Mas quase ninguém pode percorrê-la assim, não tanto porque seja difícil e até impossível encontrar uma linha mais ou menos recta sem vacilar cem vezes no trajecto, como por culpa do que – com pedantismo – poderíamos chamar a sua inacabável fragmentação ideal.
Veneza produz simultaneamente duas sensações na aparência contraditórias: por um lado, é a cidade mais homogénea – ou, se se prefere, harmoniosa – de todas as que conheci. Por homogénea ou por harmoniosa entendo principalmente o seguinte: que qualquer ponto da cidade, qualquer espaço luminoso e aberto ou recanto escondido e brumoso que, com água ou sem ela, entre a cada instante no campo visual do espectador é inequívoco, isto é, não pode pertencer a nenhuma outra cidade, não pode confundir-se com outra paisagem urbana, não suscita reminiscências (…).

Por outro lado (e aqui está o contraditório), poucas cidades parecem mais extensas e fragmentadas, com distâncias mais intrasponíveis ou lugares que provoquem uma maior sensação de isolamento.”

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