sábado, 29 de setembro de 2018
ain't I a woman?
bell hooks, feminista e activista norte-americana, discute em Não serei eu mulher? questões como a feminilidade negra, através da análise do impacto do sexismo sobre as mulheres negras durante a escravatura, o envolvimento das mulheres negras nos movimentos feministas e o racismo entre feministas. Escrito durante a licenciatura da autora e publicado apenas em 1981, Não serei eu mulher? é desde então louvado como reflexão pioneira e clássico obrigatório da teoria feminista.
segunda-feira, 10 de setembro de 2018
sábado, 1 de setembro de 2018
Pequeno conto da misoginia
O ADEUS DE ONDINA
Sim, já compreendi a
lógica: Tem de haver sempre alguém que se chame Hans, todos vocês se chamam
Hans, uns após os outros, e no entanto – só há um. É sempre só um com
este nome que não consigo esquecer, mesmo que vos esqueça a todos, vos esqueça
tão totalmente como vos amei.
(..)
Desta vez vou ser muito precisa, seus monstros, vou envergonhar-vos e tornar-vos desprezíveis, pois que não mais voltarei, não mais seguirei os vossos acenos, não aceitarei mais nenhum convite para tomar um copo, para fazer uma viagem, para uma ida ao teatro. Não voltarei nunca mais, não mais vos direi Sim, nem Tu, nem Sim. Acabar-se-ão todas essas palavras, e talvez vos conte porquê. Pois vocês já sabem todas as perguntas, e todas elas começam com: «Porquê?».
(…)
Seus monstros, como se a vossa maneira de falar não bastasse, ainda precisam de recorrer às expressões que as mulheres usam, para que não vos falte nada, para que o mundo continue redondo (…) Vocês enganam – e são enganados. Não tentem isso comigo. Comigo não!
(…)
Conheci um homem chamado Hans que era diferente de todos os outros. Conheci ainda outro homem que era diferente de todos os outros. Depois mais um que era diferente de todos os outros e se chamava Hans e que eu amei (…) Vai-te, morte, e sustem-te, tempo. Não usar encantamentos, lágrimas, entrelaçar de mãos, juras, rogos. Nada disso. Eis o mandamento: confiar que os olhos bastarão aos olhos, que bastará um pouco de verde, que a coisa mais simples do mundo será bastante. Obedecer a esta lei e não ao sentimento. Obedecer à solidão. Nessa solidão na qual ninguém me segue.
Será que és capaz de
entender? Nunca partilharei a tua solidão porque tenho a minha. Tenho-a há
muito, e tê-la-ei por muito tempo ainda.
(…)
Tanto melhor para vocês! É sinal de que são muito amados e que muito vos é perdoado. Mas não se esqueçam de que foram vocês que me chamaram ao mundo, que sonharam comigo, a outra, o outro vindo do vosso espírito e não da vossa aparência, a desconhecida que surge de pés molhados, carpindo, nos vossos casamentos, sob cujo beijo vocês tanto temem como desejam a morte, mas não chegam a morrer: no caos, em arremessos de paixão, numa razão superior.
(…)
Elogiemos a delicadeza dos vossos corpos pesadões. Algo de delicado e terno surge quando vocês se prestam a uma vontade, quando fazem alguma meiguice. Muito mais terna do que toda a ternura das vossas mulheres é a vossa ternura, quando dão a vossa palavra, ou se prestam a escutar alguém e o compreendem. Por muito pesados que sejam os vossos corpos, vocês tornam-se leves; uma tristeza vossa, um sorriso vosso podem causar um tal efeito, que mesmo uma suspeita infundada dos vossos amigos acaba por cair por terra, pelo menos durante alguns momentos.
(…)
Nunca houve tanto encanto nos objectos como quando tu deles falavas, nem nunca houve palavras superiores àquelas. Graças a ti a língua também se pode revoltar, enlouquecer, tornar-se poderosa. Fazias tudo com as palavras e as frases, entendias-te com elas ou modificava-las, davas novos nomes às coisas, e os objectos, que não entendem palavras directas nem indirectas, quase passavam a mover-se sozinhos.
Ah, ninguém sabia jogar
tão bem como vocês, seus monstros! Foram vocês que inventaram todos os jogos,
jogos de números e jogos de palavras, jogos de sonhos e jogos de amor.
Nunca ninguém falou assim
de si próprio. Quase tocando a verdade. De um modo mortífero. Curvado sobre a
água, num abandono quase total. A escuridão já se espalhou pelo mundo e não
posso pôr o meu colar de conchas. Não vai surgir clareira alguma. Tu, que és
outro entre os outros. Estou submersa sob as águas. Sob as águas.
E lá em cima anda alguém
que odeia a água e odeia o verde e não compreende, não compreenderá nunca. Como
eu nunca compreendi.
Quase emudecido,
quase ainda
ouvindo
o chamamento.
Vem. Uma vez só.
Vem.
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Fala uma ninfa como podia
falar uma mulher.
Autoretrato
De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.
De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.
De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.
De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.
De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.
De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.
De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.
Rui Knopfli
O eremita viajante
Numa
sexta-feira à noite, percorro a pilha de livros por ler e decido que no dia
seguinte ignorarei o calor e as praias lotadas, para ficar no sofá a viajar
pelo Japão, com a obra completa de Matsuo Bashô.
Na poesia
como em tudo o resto, tendo a preferir os estilos mais viscerais, pouco dados
às contenções da forma ou imposições de rimas, que convocam de imediato a carne
e a colocam em cheque. Mais do que admirar a elegância estilística de um verso
ou a frase burilada, quero sentir o poema – na garganta, no peito, por vezes no
estômago, raras vezes no pipi (ocorre-me agora, com alguma graça, que nunca
senti um poema nos pés).
Quer isto
significar que, em princípio, não atinaria com a estética dos haikus. Mas como
também eu sou uma metamorfose ambulante, dou por mim a curtir os pequeninos
poemas de 3 estrofes, carregados de uma forte potência visual que fica a
ressoar na cabeça do leitor, como pequenas aguarelas onde, com algumas
pinceladas desleixadas, se consegue sugerir toda uma atmosfera, aparentemente
simples, porque se atém aos factos mais materiais da existência – as estações
do ano, o quotidiano das árvores e dos animais –, que é onde o mistério do
mundo se revela mais intensamente e de forma universal.
Nos mais
de 1000 haikus de Bashô, o enredo principal cabe à natureza, contada por um
sujeito poético que se oblitera nesse tempo da observação, um tempo que é
sempre lento e implica uma vida mais humilde e despojada quer das solicitações
do ego, quer das solicitações da comunidade. Nesse tempo, o grande
acontecimento poético cabe ao cuco que canta, à cerejeira que floresce ou à fase que a lua apresenta no céu.
116
enquanto a cerejeira
estiver em flor
o mal-estar não existe
118
flores por todo o lado –
animam-se o sacerdote
e a prostituta
136
salta a rã
para dentro do velho tanque –
plof!
302
ah as brisas do outono! –
dorme ao ar livre
e compreenderás o meu poema
316
não há frio que resista
quando se dorme acompanhado –
e que bom que é!
340
quando floresce a ameixeira
nada sei
como o coração dos poetas
520
sobre a montanha da Pluma Negra
a lua crescente –
paz dentro de mim
542
o homem pára
para olhar o trevo à chuva –
e molha-se
664
o coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante
699
o cuco da montanha
junta solidão
à minha tristeza
753
pudesse eu viver
como a cerejeira da montanha –
por sobre o mundo
868
fragrância da flor da ameixeira
onde está a pessoa
que nunca conhecerei?
886
o gato com o cio
trepa para o cão
– a coisa é séria!
888
Nara tem sete edifícios
mas oito pétalas
tem cada flor de cerejeira
939
os nossos corações estão em paz
na pequena sala de chá –
o outono ronda lá fora
943
em minha casa
junto à janela –
quadrada é a lua
951
quem olhará a lua de Yoshino
esta noite
a vinte quilómetros daqui
963
junto com o outono que parte
o vento dos pinheiros
dá uma volta pelos beirais
974
a doença atacou o viajante
sonhos vagueiam
por campos secos
[este haiku foi escrito por Bashô três dias antes de morrer e é considerado o seu último poema. A imagem que me imediatamente me evoca é o Campo de Trigo com Corvos do Van Gogh, se não me engano também o último quadro que ele pintou, semanas antes de morrer.]
Voltei de férias há
pouco e nunca Lisboa me pareceu tão artificial e despojada de alma. Maçam-me o
betão, o ruído contínuo, ressaco árvores e vento. Talvez por isso a leitura de Bashô me tenha agradado tanto. Quisera encontrar outro
tempo, outra vida – um pouco mais de azul… Um pouco como nas estrofes iniciais do poema do Verlaine que me ocorrem transformar num haiku (aldrabado pois claro, pois estou-me a borrifar para a contagem de sílabas):
chove no meu coração
como chove na cidade
– que langor tão escuro!
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