sábado, 1 de setembro de 2018

Pequeno conto da misoginia



O ADEUS DE ONDINA


Sim, já compreendi a lógica: Tem de haver sempre alguém que se chame Hans, todos vocês se chamam Hans, uns após os outros, e no entanto – só há um. É sempre só um com este nome que não consigo esquecer, mesmo que vos esqueça a todos, vos esqueça tão totalmente como vos amei.
(..)

Desta vez vou ser muito precisa, seus monstros, vou envergonhar-vos e tornar-vos desprezíveis, pois que não mais voltarei, não mais seguirei os vossos acenos, não aceitarei mais nenhum convite para tomar um copo, para fazer uma viagem, para uma ida ao teatro. Não voltarei nunca mais, não mais vos direi Sim, nem Tu, nem Sim. Acabar-se-ão todas essas palavras, e talvez vos conte porquê. Pois vocês já sabem todas as perguntas, e todas elas começam com: «Porquê?».
(…)

Seus monstros, como se a vossa maneira de falar não bastasse, ainda precisam de recorrer às expressões que as mulheres usam, para que não vos falte nada, para que o mundo continue redondo (…) Vocês enganam – e são enganados. Não tentem isso comigo. Comigo não!
(…)

Conheci um homem chamado Hans que era diferente de todos os outros. Conheci ainda outro homem que era diferente de todos os outros. Depois mais um que era diferente de todos os outros e se chamava Hans e que eu amei (…) Vai-te, morte, e sustem-te, tempo. Não usar encantamentos, lágrimas, entrelaçar de mãos, juras, rogos. Nada disso. Eis o mandamento: confiar que os olhos bastarão aos olhos, que bastará um pouco de verde, que a coisa mais simples do mundo será bastante. Obedecer a esta lei e não ao sentimento. Obedecer à solidão. Nessa solidão na qual ninguém me segue.
Será que és capaz de entender? Nunca partilharei a tua solidão porque tenho a minha. Tenho-a há muito, e tê-la-ei por muito tempo ainda.
(…)

Tanto melhor para vocês! É sinal de que são muito amados e que muito vos é perdoado. Mas não se esqueçam de que foram vocês que me chamaram ao mundo, que sonharam comigo, a outra, o outro vindo do vosso espírito e não da vossa aparência, a desconhecida que surge de pés molhados, carpindo, nos vossos casamentos, sob cujo beijo vocês tanto temem como desejam a morte, mas não chegam a morrer: no caos, em arremessos de paixão, numa razão superior.
(…)

Elogiemos a delicadeza dos vossos corpos pesadões. Algo de delicado e terno surge quando vocês se prestam a uma vontade, quando fazem alguma meiguice. Muito mais terna do que toda a ternura das vossas mulheres é a vossa ternura, quando dão a vossa palavra, ou se prestam a escutar alguém e o compreendem. Por muito pesados que sejam os vossos corpos, vocês tornam-se leves; uma tristeza vossa, um sorriso vosso podem causar um tal efeito, que mesmo uma suspeita infundada dos vossos amigos acaba por cair por terra, pelo menos durante alguns momentos.
(…)

Nunca houve tanto encanto nos objectos como quando tu deles falavas, nem nunca houve palavras superiores àquelas. Graças a ti a língua também se pode revoltar, enlouquecer, tornar-se poderosa. Fazias tudo com as palavras e as frases, entendias-te com elas ou modificava-las, davas novos nomes às coisas, e os objectos, que não entendem palavras directas nem indirectas, quase passavam a mover-se sozinhos.
Ah, ninguém sabia jogar tão bem como vocês, seus monstros! Foram vocês que inventaram todos os jogos, jogos de números e jogos de palavras, jogos de sonhos e jogos de amor.

Nunca ninguém falou assim de si próprio. Quase tocando a verdade. De um modo mortífero. Curvado sobre a água, num abandono quase total. A escuridão já se espalhou pelo mundo e não posso pôr o meu colar de conchas. Não vai surgir clareira alguma. Tu, que és outro entre os outros. Estou submersa sob as águas. Sob as águas.
E lá em cima anda alguém que odeia a água e odeia o verde e não compreende, não compreenderá nunca. Como eu nunca compreendi.

Quase emudecido,
quase ainda
ouvindo
o chamamento.

Vem. Uma vez só.
Vem.

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Fala uma ninfa como podia falar uma mulher.

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