quinta-feira, 21 de novembro de 2019

“o amor é seres para mim a faca com que remexo as minhas entranhas”




«Só queria dizer o seguinte: não foi a sua doença que me assustou (tanto mais que estou constantemente a interromper-me a mim próprio, ando às voltas com a memória, reconheço por entre a sua fragilidade uma quase frescura camponesa e chego à conclusão: não, não está doente, é um aviso, mas não é uma doença dos pulmões), não foi isso, portanto, que me assustou, o que me assustou foi pensar no que de certeza antecedeu esse incidente. Estou, para já, a deixar de lado as outras coisa de que fala na sua carta: nem um tostão – chá e maçãs – todos os dias das 2 às 8 – são coisas que não consigo compreender, manifestamente, são mesmo só para se explicar de viva voz. “Não vou, portanto, estar aqui com isso (só na carta, claro, porque não são coisas que se esqueçam) e só penso na explicação que arranjei na altura para a doença no meu caso e se aplica a muitos casos. O que aconteceu foi que o cérebro já não conseguia suportar as preocupações e dores que lhe impunham. Disse: “Desisto; mas se há alguém aqui que se preocupe um pouco com a conservação do conjunto, então que fique com alguma da minha carga e isto vai aguentar-se mais um bocadinho.” Foi então que os pulmões se ofereceram, assim como assim, não tinham muito a perder. Estas negociações entre o cérebro e os pulmões, que ocorreram sem meu conhecimento, foram seguramente terríveis.»

«E quando uma vez me perguntaste como posso ter chamado «bom» ao sábado com esse medo no coração, não é difícil explicar. Como eu te amo (e portanto eu amo-te, sua tola, tal como o mar ama um minúsculo seixo no seu fundo, é exactamente assim que te cubro com o meu amor – e oxalá eu seja também um seixo a teu lado, se o céu o permitir), amo o mundo inteiro, a que pertence também o teu ombro esquerdo, não, primeiro era o ombro direito e, por isso, beijo-o quando isso me dá prazer (e tu tens a amabilidade de despir aí a blusa), o ombro esquerdo está também incluído e o teu rosto sobre mim no bosque e o teu rosto debaixo de mim no bosque e o repousar no teu peito quase desnudado. E por isso tens razão quando dizes que já fomos um único ser, e não tenho nenhum medo disso, pelo contrário, é a minha única felicidade e o meu único orgulho e não o restrinjo de modo nenhum ao bosque.»

domingo, 17 de novembro de 2019

Memórias da Plantação


MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO é uma compilação de episódios quotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas. Das políticas de espaço e exclusão às políticas do corpo e do cabelo, passando pelos insultos raciais, Grada Kilomba desmonta, de modo acutilante, a normalidade do racismo, expondo a violência e o trauma de se ser colocada/o como Outra/o. Publicado originalmente em inglês, em 2008, MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO tornou-se uma importante contribuição para o discurso académico internacional. Obra interdisciplinar, que combina teoria pós-colonial, estudos da branquitude, psicanálise, estudos de género, feminismo negro e narrativa poética, esta é uma reflexão essencial e inovadora para as práticas descoloniais.

Verão '19: São Pedro do Sul e Alpes Marítimos










Melancolia e Arquitectura


Já vai na 2.ª edição este belíssimo livro. Quem ainda não leu, faça esse favor a si próprio.

Viva México




“O México é vinte vezes maior do que Portugal. (…)
Esta é pois a história de um país violento e desmesurado. «O mexicano faz amor com a morte», dirá alguém a certa altura, logo no início da viagem. É esse o principal traço de carácter associado à identidade mexicana. Não é por acaso que há caveiras na capa de Viva México.  Parecem rir-se de nós, daqueles de nós que não aprenderam ainda, como os mexicanos, a rir-se delas.
E contudo talvez tudo isto não passe de pura ficção. Não no sentido de a ficção ser o contrário da verdade. Ficção por ser uma memória inventada. Por corresponder ao modo como Jean Cocteau definia o surrealismo: como «mais verdadeiro do que o verdadeiro». Talvez comece aqui o carácter literário de um país que o papa do surrealismo, André Breton, descreveu como o mais surrealista do mundo.”
do prefácio de carlos vaz marques

“Ninguém poderá alguma vez dizer que viu a Cidade do México. Quando a começamos a ver, calamo-nos, e depois nunca mais acabamos de a ver.
(…)
A Cidade do México é isto: a partir de agora somos bichos em alerta.
(…)
Era uma vez uma piñata. As crianças batiam-lhe com paus até caírem caveiras de açucar. Foi o meu primeiro México, numa história de aventuras. Muitos anos depois vi mexicanos. Foi nos Estados Unidos. Havia o cinema, claro, sempre a caminho do Rio Bravo, e Buñuel sempre a atormentar a Europa. Houve a música de Chavela Vargas, arranca-corações. O México Insurrecto e o Debaixo do Vulcão em traduções exasperantes. A Planície em Chamas de Juan Rulfo e A Chama Dupla de Octavio Paz. Os poemas índios de Herberto, Artaud entre os tarahumara. Imagens vagas de Breton, Trotski e Tina Modotti. O México de J. M. G. Le Clézio. Frida Kahlo por Frida Kahlo: «Enorme coluna vertebral que é base para toda a estrutura humana. Já veremos, já aprenderemos. Sempre há coisas novas. Sempre ligadas às antigas vivas.»
(…)
Aqui estou, Frida, sentada em frente ao teu retrato. As coisas novas ligadas às antigas vivas, vamos a isso.
(…)
Mas também foi Fuentes quem lhe chamou «a mulher irrepetível», e eu vejo-a de pescoço alto, com a sua cauda de coisas antigas, em parte aztecas, em parte europeias, a prodigiosa indígena cheia de humor negro decidida a enfrentar los cabrones, uma aparição do Novo Mundo que a cada manhã trazia os mais requintados veludos, bordados e cetins do México, e em cada dedo um anel, e no colo jóias de terracota, e nas orelhas as pequenas caixinhas com pirilampos das camponesas, ela que tinha olhos, todos o disseram, de obsidiana.
(…)
Coyoacán foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
(…)
É uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus.
(…)
Na minha cabeça, a obsidiana é uma propriedade de Herberto Helder. Descobri-a nos textos dele sem saber o que era. Era uma palavra que fazia parte de um mundo. Depois um dia vi obsidiana nos Açores. Esse vidro vulcânico «que se forma quando as lavas incandescentes, a 600 graus, com alto conteúdo de sílica, esfriam rapidamente», como explica agora o painel em Oaxaca. Geralmente é negra, mas «também pode ser avermelhada, cor de café, verde, ou com raios de cores diferentes». A sua transparência, translucidez e brilho «dependem da espessura do fragmento e da luz debaixo da qual o observemos». O conhecimento da obsidiana no México antigo «provém de tempos pré-históricos do povoamento da América, pelo menos desde 10 000 a.C.».
Afiada, corta. Polida, faz de espelho. Nela se miraram imperadores, perscrutando o futuro. Pode servir para tudo e para nada, só a acumular energia séculos fora.
É o que podemos dizer da poesia, quando podemos.
(…)
O México dá vontade de chorar, um choro de séculos em que não percebemos porque choramos, se somos nós que choramos, se não seremos nós já eles. Nunca, em lugar algum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio corpo faz parte daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile.
Octavio Paz descreve os mexicanos como o mais solitário dos povos, perpetuamente incapaz de transpor e ser transposto. Por isso, e por tudo e por nada, existe a fiesta. É uma necessidade orgânica, a descarga.
Este Novo Mundo começa no extermínio, e isso há-de significar qualquer coisa. No tempo indígena significa que o extermínio histórico faz parte do presente.
Certa vez, Frida Kahlo descreveu uma imagem a um amigo: «É de dia e de noite, e há um esqueleto (ou morte) que foge espavorido da minha vontade de viver.» Anos depois, pintou Viva la Vida por cima de talhadas de melancia, e essa é a sua última palavra. Afixo-a no frigorífico na noite em que volto.
Vai ser dia no México. Que les vaya bien.

sábado, 2 de novembro de 2019

Filmes do caralho




Sanatório sob o signo da clepsidra


"Viver à custa de metáforas é uma das particularidades da minha existência; deixo-me levar facilmente pela primeira metáfora que aparece."
Sanatório sob o signo da clepsidra, Bruno Schulz.
Edições do Tédio.
Edição ilustrada com desenhos de Ricardo Castro e alguns desenhos originais de Bruno Schulz. Inclui também o ensaio «A Mitificação da Realidade» de Schulz e dois textos críticos sobre a sua obra e desenhos.
Cada exemplar é único. Todas as capas foram impressas manualmente em tipografia de caracteres móveis n´O Homem do Saco, em Lisboa.
Tradução Henryk Siewierski
Adaptação e Revisão: Patrícia Guerreiro Nunes e Ana Lorena Ramalho
Capa mole | 264 pp. | 14 x 20 cm
EAN 9789899971059 | PVP 18€
Encomendas para o email ldantanho@gmail.com
(com oferta de portes de envio para Portugal Continental).

Dos coleccionadores de ninharias

Para Maria Teresa Horta
Uma das tarefas diárias do poeta italiano Tonino Guerra era recortar dos jornais (Tonino diria resgatar) notícias insólitas de que ele seria, porventura, o único interessado; ou, então, colecionar aquelas imagens de mundos desconhecidos que, por vezes, para ocupar inesperados vazios ou por pura desatenção, os editores deixam passar; bem como uma infinidade de pequenos textos sobre camponeses e estrelas cadentes, sobre curiosidades linguísticas e tesouros descobertos em barcos afundados; sobre tradições populares ou a migração silenciosa que algumas espécies animais realizam entre estações. Eram ninharias assim, completamente inúteis e inatuais, que ele juntava com o despropósito de um detetive ocioso, apostado em resolver um quebra-cabeças que sabia, à partida, sem solução. Mas depois, quando nos filmes de Antonioni, Fellini, Tarkovsky, ou Theo Angelopoulos, em que ele colaborou na escrita dos argumentos, vemos vestígios desta sua atividade quotidiana, quedamo-nos maravilhados. Se nos dissessem que ele recolhera aquelas informações dos mesmos cinzentíssimos jornais que folheámos teríamos dificuldade em acreditar. Colocados ali, ganhavam uma intensidade expressiva flagrante, distinta, incrivelmente precisa e íntima.
(excerto da crónica "A mais antiga flor do mundo" de José Tolentino Mendonça, publicada na revista E a 15 de Maio de 2019)

Where is the Life we have lost in living?

The Eagle soars in the summit of Heaven,
The Hunter with his dogs pursues his circuit.
O perpetual revolution of configured stars,
O perpetual recurrence of determined seasons,
O world of spring and autumn, birth and dying!
The endless cycle of idea and action,
Endless invention, endless experiment,
Brings knowledge of motion, but not of stillness;
Knowledge of speech, but not of silence;
Knowledge of words, and ignorance of the Word.
All our knowledge brings us nearer to our ignorance,
All our ignorance brings us nearer to death,
But nearness to death no nearer to God .
Where is the Life we have lost in living?
Where is the wisdom we have lost in knowledge?
Where is the knowledge we have lost in information?
The cycles of Heaven in twenty centuries
Bring us farther from God and nearer to the Dust.(...)

The Rock, T.S. Eliot