sábado, 2 de novembro de 2019

Dos coleccionadores de ninharias

Para Maria Teresa Horta
Uma das tarefas diárias do poeta italiano Tonino Guerra era recortar dos jornais (Tonino diria resgatar) notícias insólitas de que ele seria, porventura, o único interessado; ou, então, colecionar aquelas imagens de mundos desconhecidos que, por vezes, para ocupar inesperados vazios ou por pura desatenção, os editores deixam passar; bem como uma infinidade de pequenos textos sobre camponeses e estrelas cadentes, sobre curiosidades linguísticas e tesouros descobertos em barcos afundados; sobre tradições populares ou a migração silenciosa que algumas espécies animais realizam entre estações. Eram ninharias assim, completamente inúteis e inatuais, que ele juntava com o despropósito de um detetive ocioso, apostado em resolver um quebra-cabeças que sabia, à partida, sem solução. Mas depois, quando nos filmes de Antonioni, Fellini, Tarkovsky, ou Theo Angelopoulos, em que ele colaborou na escrita dos argumentos, vemos vestígios desta sua atividade quotidiana, quedamo-nos maravilhados. Se nos dissessem que ele recolhera aquelas informações dos mesmos cinzentíssimos jornais que folheámos teríamos dificuldade em acreditar. Colocados ali, ganhavam uma intensidade expressiva flagrante, distinta, incrivelmente precisa e íntima.
(excerto da crónica "A mais antiga flor do mundo" de José Tolentino Mendonça, publicada na revista E a 15 de Maio de 2019)

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