sábado, 24 de outubro de 2020

As casas, esses seres montruosos

 "No sólo he imaginado eso juegos, también he meditado sobre la casa. Todas las partes de la casa están muchas veces, cualquier lugar es otro lugar. No hay un aljibe, un patio, un abrevadero, un pesebre; son catorce [son infinitos] los pesebres, abrevaderos, patios, aljibes, la casa es del tamaño del mundo; mejor dicho, es el mundo. Sin embargo, a fuerza de fatigar patios con un aljibe y polvorientas galerías de piedra gris, he alcanzado la calle y he visto el templo de las Hachas y el mar. Eso no lo entendí hasta que una visión de la noche me reveló que también son catorce [son infinitos] los mares y los templos. Todo está muchas veces, catorce veces, pero dos cosas hay en el mundo que parecen estar una sola vez: arriba, el intrincado sol; abajo, Asterión. Quizá yo he creado las estrellas y el sol y la enorme casa, pero ya no me acuerdo."

Jorge Luis Borges, La casa de Asterión


As casas, sempre as casas…

As casas são seres obsessivos, feitas de pedra teimosa cuja orgulhosa memória nenhum arquitecto consegue redimir.

Naqueles tempos estranhos e difíceis, as casas estavam mais vivas que os seus habitantes. Tornaram-se excessivas. Desvinculadas da economia humana, ramificavam-se, cresciam desordenadamente e ninguém beneficiava da amplitude das suas florescências labirínticas. Ninguém, a não ser os fantasmas e as bibliotecas. Uma pessoa podia ir dormir e acordar junto à abóbada celeste, apartada do resto da comunidade humana que se disseminava pelas casas festejando o facto destas terem finalmente tomado para si o papel principal nos seus destinos. Lá em cima, no tecto do mundo, infelizmente não restava mais caminho para o humano: incapaz de erguer a cabeça, este era obrigado a retroceder, a perder a verticalidade a tão duras expensas conquistada. A pedra animada vergava finalmente a vã ambição de um animal que se sonhara intensamente a si próprio e que agora soçobrava pela ironia do cimento.

Não obstante o amor continuava e as escadas eram reservadas para os amantes. Sempre que alguém se apaixonava, as casas pariam escadas e a geometria dos seus novelos despropositados era em si o próprio Amor. Os amantes passavam as horas – já não havia dia nem noite, o ar tornara-se líquido – vagabundando acima e abaixo, com os olhos virados para dentro. Uns subiam sem dificuldade, outros desciam sem medo. Moviam-se como autómatos, pálidos, brancos como a cal das casas, e etéreos. E esse vaivém constante e silencioso fazia com que o sangue tornasse a circular no interior das veias dos mortos.

A criança olhava a desordem das casas e permitia-se enlouquecer. Entendia o último dos interditos – as casas são eróticas, não há nada mais erótico do que uma casa – e não podia senão enlouquecer. Depois aparecia alguém vindo de um passado distante, talvez do tempo das perseguições dos romanos, e este começava a sorver os cabelos da criança. Esta olhava-o, com os seus cabelos na boca, transbordando como um mar de estrelas, e sentia um nojo profundo. Queixava-se à sua mãe. Porque as crianças se queixam sempre às suas mães, mesmo quando já não são crianças ou não têm mãe.

As casas, essas, continuavam a expandir-se, megalómanas no desenho de si mesmas e indiferentes a todo o sofrimento que lhes fosse externo.


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