terça-feira, 16 de novembro de 2021

Lobelia excelsa

Lobelia foi uma menina endiabrada. Cresceu sozinha com o pai, guarda de passagem de nível numa estação ferroviária do sul. A salvo dos cuidados femininos, entregou-se sem pudor aos prazeres da solidão e do fogo. Ao início, incendiava somente estábulos abandonados e pequenos abrigos campestres. Mas toda a paixão é superlativa - sobretudo a do fogo.

Uma noite incendiou a própria casinha do apeadeiro. O pai nunca mais despertou para os comboios da madrugada.

A Lobelia aconteceram muitas coisas. O tempo foi o seu maior carrasco. Fumou-a. Casou, teve mais de uma dúzia de filhos. Não amou nem foi amada. Perdeu as formas belas e vive hoje à beira mar, amarga e completamente cega. Desactivada. Do seu amante fogoso, não conserva memória - a não ser a língua viperina, pontiaguda.

A Girl Walks Home Alone at Night

Leda ou o Louvor das Bem-Aventuradas Trevas

"Pareceu pouco depois que ele recuava e alterava as suas carícias. Leda abria-se à sua frente como uma flor azul do rio. Sentia entre os joelhos frios o calor do corpo da ave. De repente gritou: Ah!… Ah!… E os seus braços tremeram como ramos claros. O bico tinha-a horrivelmente penetrado, e a cabeça do Cisne movia-se dentro dela com raiva, como se estivesse a comer-lhe as entranhas, deliciosamente.

Houve então um longo soluço de felicidade abundante. Deixou cair para trás a cabeça febril com os olhos fechados, com os dedos arrancou erva e crispou no vazio os pequenos pés convulsivos que desabrocharam no silêncio.

(...)

— És a noite. Amaste o símbolo de tudo quanto é luz e glória, e uniste-te a ele.

«Do símbolo nasceu o símbolo, e do símbolo nascerá a Beleza. Ela está no ovo azul que saiu de ti. Sabe-se desde o começo do mundo que vai chamar-se Helena, e o último dos homens saberá que ela existiu.

«Estiveste cheia de amor porque tudo ignoraste. Em louvor das bem-aventuradas trevas.

(...)

— Não ouviste as palavras do Rio? Nunca devemos explicar os símbolos. Nunca devemos penetrá-los. Tende confiança. Ah! Não duvideis. O que figurou o símbolo escondeu nele uma verdade, mas não deve manifestá-la; se o fizesse, que razão teria para a simbolizar?

«Não devemos dilacerar as Formas porque só escondem o Invisível. Sabemos que estas árvores têm encerradas dentro de si adoráveis ninfas; e, no entanto, quando o lenhador as abre já a hamadríade está morta. Embora saibamos que atrás de nós há sátiros dançantes e nudezes divinas, não devemos voltar-nos: tudo teria desaparecido.

«O reflexo ondulante das fontes é que é a verdade da náiade. O bode de pé no meio das cabras é a verdade do sátiro. Uma outra de vós é a verdade de Afrodite. Mas não devemos dizê-lo, não devemos sabê-lo, não devemos tentar aprendê-lo. Essa é a condição do amor e da alegria. Em louvor das bem-aventuradas trevas.»

Pierre Louÿs

Tradução de Aníbal Fernandes

domingo, 25 de abril de 2021

Agnès Varda



 

This Be the Verse

 They fuck you up, your mum and dad.   

    They may not mean to, but they do.   
They fill you with the faults they had
    And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
    By fools in old-style hats and coats,   
Who half the time were soppy-stern
    And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.
    It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
    And don’t have any kids yourself.

Philip Larkin

domingo, 18 de abril de 2021

The Witch (2015): Happy End

Juan Rulfo




"Romance misterioso, místico, sussurrante, murmurante, que muge e mudo, PEDRO PÁRAMO concentra assim todas as sonoridades mortas do mito. Mito e morte: estes são os dois «emes» que coroam todos os outros antes de coroarem o próprio nome do México: romance mexicano essencial, insuperado e insuperável, PEDRO PÁRAMO resume-se no espectro do nosso país: um murmúrio de pó do outro lado do rio da morte.

(...)

Rulfo, como Job no sonho da tumba, escreve um romance poemático no qual não cabe fazer a distinção entre hypnos e thanatos, entre o sonho e a morte. A educação de Juan Preciado, que não é uma educação sentimental nem um Bildungsroman, mas sim um Totensroman, um romance para a morte e um Angsttraum, um sonho para o medo, consistiu em viajar até à origem para chegar ao pai e descobrir que o pai é história e a história é injusta e que o pai, o chefe, o conquistador, deve morrer para ingressar no eterno presente, que é a morte."

Carlos Fuentes

Li PEDRO PÁRAMO há uns anos. Era Verão - a estação que melhor casa com a morte, segundo De Quincey - e eu passava alguns dias em Alter do Chão, terra de cavalos e um pequeno castelo. No centro da vila, de dia ou de noite, muito raramente se avistava vivalma; de maneira que, curiosamente, no meu espírito também se criou uma colusão simbólica e sempre que penso em Comala, a primeira imagem que me vem é a dessa vila alentejana.

É um livro difícil e árido, uma descida aos infernos. Lê-se como quem sonha um pesadelo ou como quem atravessa um deserto delirante, sem réstia de água ou esperança. A mensagem subconsciente que nos traz é tanto metafísica como política (a mãe é essa terra colonizada, massacrada, essa madre ofendida que está tão presente no calão da América Latina). E sei que se trata de um livro fundador para o realismo mágico que tanto aprecio, mas não posso dizer que tenha entrado no meu panteão. Mais tarde, vim a comprar na Cidade do México a antologia EL LLANO EN LLAMAS e posso dizer que prefiro o Rulfo contista.  Digo-o com pena pois sei que há em PEDRO PÁRAMO um arquétipo poderoso com o qual me poderia relacionar mas falhei o encontro. Culpa dos banhos e festas de aldeia?

sábado, 10 de abril de 2021

Yo soy mi propia casa


 I

Casa redonda tenía
de redonda soledad: 
el aire que la invadía
era redonda armonía
de irrespirable ansiedad.

Las mañanas eran noches,
las noches desvanecidas,
las penas muy bien logradas,
las dichas muy mal vividas.

Y de ese ambiente redondo,
redondo por negativo,
mi corazón salió herido
y mi conciencia turbada.
Un recuerdo mantenido:
redonda, redonda nada.

II
Escaleras sin peldaños
mis penas son para mí,
cadenas de desengaños,
tributos que al mundo dí.

Tienen diferente forma
y diferente matiz,
pero unidas por los años,
mis penas, o mis engaños,
como sucesión de daños,
son escaleras en mí.

III
De mi esférica idea de las cosas,
parten mis inquietudes y mis males,
pues geométricamente, pienso iguales
lo grande y lo pequeño, porque siendo,
son de igual importancia; que existiendo,
sus tamaños no tienen proporciones,
pues no se miden por sus dimensiones
y sólo cuentan, porque son totales,
aunque esféricamente desiguales.

IV
Me estoy volcando hacia fuera
y ahogándome estoy por dentro.
El mundo es sólo una esfera,
y es al mundo al que pidiera
totalidad, que no encuentro.

Totalidad que debiera
yo, en mí misma, realizar,
a fuerza de eliminar
tanta pasión lastimera;
de modo que se extinguiera
mi creciente vanidad
y de este modo pudiera
dar a mi alma saciedad.

V
De mi barroco cerebro,
el alma destila intacta;
en cambio mi cuerpo pacta
venganzas contra los dos.

Todo mi sér en pos
de un final que no realiza;
mas ya mi alma se desliza
y a los dos ya los libera,
presintiéndoles ribera
de total penetración

VI
Yo soy cóncava y convexa;
dos medios mundos a un tiempo:
el turbio que muestro afuera,
y el mío que llevo dentro.
Son mis dos curvas-mitades
tan auténticas en mí,
que a honduras y liviandades
toda mi esencia les dí.

Y en forma tal conviví
con negro y blanco extremosos,
que a un mismo tiempo aprendí
infierno y cielo tortuosos.

Pita Amor