segunda-feira, 16 de junho de 2008

Em Carne Viva




Pergunto-me se algum dia as nossas feridas podem cicatrizar, se existirá recuperação possível de um modo de dor inominável que nos atravessa e corta de lado a lado, deixando-nos indiferentes a tudo, até nos tornarmos incapazes de sentir empatia pelos outros e reconhecer o direito da dor neles. Os românticos responderiam prontamente que sim, que existe salvação e que ela acontecerá pelo amor. Mas entretanto, a humanidade passou por dois séculos de progresso e razão, cada um de nós foi-se encarcerando em prisões confortáveis onde jogamos pelo seguro e nos tornamos fortes incomunicáveis de uma batalha travada contra nós mesmos, e os dias da minha vida vão passando e ninguém aparece para erguer as persianas da minha alma, que escapou sei lá para onde, talvez cansada de viver intensamente e sem ligações.

Nestes dias de angústia, andei a ler de modo desapaixonado (claro está, pois se a minha alma decidiu ir de férias) Em Carne Viva do escritor israelita David Grossman. De modo muito resumido, conta a história de um homem – Yair – que decide iniciar uma troca de correspondência, com uma mulher desconhecida – Miriam -, após observá-la uma noite e reconhecer no seu sorriso magoado algo da sua dor fundadora. Juntos, eles vão apalpando as zonas mais obscuras do outro em busca de um nome para a dor e também para a salvação, construindo uma intimidade original, baseada apenas em palavras e troca de segredos e infâmias, vivendo uma comunhão apaixonada dentro de uma bolha isolada da realidade e do quotidiano de cada um.

Em busca de uma nudez total, de uma sinceridade sem fronteiras que não se paute pela beleza da mentira, mas pela sordidez da verdade – porque a verdade parece ser sempre sórdida e tentamos sempre esconder dos outros todos os nossos pequenos delitos e grandes infâmias, o nosso lixo e fezes, para não perdermos a sua estima. Porque estamos convencidos, no fundo de nós mesmos, que não somos tão puros e estreitos de alma com as pessoas que prezamos, porque insistimos em amar nos outros a força que gostaríamos de ter. E assim, vamos vivendo o quotidiano, contraíndo o esfincter, pagando as contas e fazendo alguns projectos excêntricos nos intervalos de todas as exigências. Ignorando a mancha dos outros e sufocando na dor que não temos a coragem de vomitar. Até que a vida acaba ou explodimos antes dela acabar, restando apenas destroços em carne viva, que ninguém quer tocar, talvez por medo da contaminação.

Yair e Miriam entrelaçam-se através das palavras que trocam, com o compromisso de não se encontrarem fisicamente, para que os corpos não insistam em tocar-se das maneiras que lhes impuseram e depois se separem, porque esse é o nosso impulso natural, separar-mo-nos e, não o contrário. No entanto, todos esperamos o momento em que algo contrarie esse impulso natural, alguém nos toque delicadamente no rosto e deixe nas nossas profundezas uma marca de frescura que se sobreponha ao odor da podridão e da solidão.

Ao princípio, tocámo-nos como dois estranhos.
Depois, como nos ensinaram.
Só depois ousamos tocar-nos como eu e tu.


Embora aprecie bastante a versão portuguesa do título do livro, prefiro sem dúvida a opção inglesa: Be My Knife. Porque o amor pode de facto conter a salvação, mas terá que ser forte, incisivo e agudo como uma faca, para escavar até às feridas mais retraídas.
O Amor é que tu sejas a faca com a qual escavo dentro de mim”, escreve Miriam. Uma faca que nos permita nomear a dor, a ofensa, a humilhação, o abandono, para depois saborear o toque terno de uma mão na face. E a abertura radiante das persianas que insistem em permanecer fechadas até esse encontro. Até lá, parto em busca da minha alma e espero encontrá-la como um homem adulto subitamente desfeito num pranto libertador de lágrimas, para que possamos, por agora, fazer as pazes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito...muito bom...!!!
Mas parece-me que reconheço alguns pensamentos pessoais.......

Muitas bjks e descansa
Desta que te admira e que sabe que vais muito longe.