O amor é, desde Platão, uma questão política. A ligação amorosa coloca tudo o que há de mais límpido e visceral na mesa – é no fundo o significado de intimidade. Implica a perda do controlo total da situação, o arrebatamento pela paixão, a vertigem da entrega – todas as cartas na mesa. Embora todas as pessoas desejem viver um grande amor, nem todas são capazes: há todo um conjunto de factores como o medo, a insegurança, o preconceito, as diferenças sociais, os abismos culturais, que impedem a rendição absoluta. Além disto, há os que preferem continuar a jogar, depois de verem a mão dos outros, porque acham que pode haver uma mão mais alta algures capaz de os satisfazer profundamente.
A Mulher Certa de Sándor Márai fala da pessoa certa, de amor, de mentira, de manipulação, de dor e solidão. É um livro que deve ser lido numa noite de insónia. A moral da história? Para poucas pessoas existe uma pessoa certa e para uma infinidade ainda menor esta pessoa coincide com o ser amado. Para a maioria «existem somente pessoas, e, em todas elas, um pedacinho da pessoa certa, mas em nenhuma se concentra tudo o que se aguarda e dela esperamos. Nenhuma pessoa reúne em si tudo isso, nem existe a certa, a única, a maravilhosa, essa figura singular que nos traz felicidade. Existem somente pessoas, e em todas elas, há escórias e um raio de luz, tudo…»
É sempre mais fácil afastarmo-nos ou deixar que venham até ao nosso hall de entrada apenas, temendo que a nossa sala de reserva onde conservamos a nossa querida solidão contenha mais cadáveres que tesouros. O desencontro tem a seu favor elevadas probabilidades face à união autêntica. O amor acontece muito raramente, o mais das vezes são apenas duas solidões protegendo-se uma à outra, como diria Rilke, ou duas pessoas a verem televisão sentenciadas por uma vida, como cantava Nina Simone.
«Tens aqui lume. Tu como resistes nesta luta contra o cigarro?... Eu não consigo, pelo que já desisti. Não aos cigarros, à luta. Um dia, também terei de ajustar estas contas. Um homem deve perguntar-se se vale a pena, ou não, viver mais cinco ou dez anos sem cigarros, ou se lhe convém abandonar esse vício vergonhoso e mesquinho, que acaba por matá-lo, mas que, enquanto não o mata, lhe enche a vida de uma estranha matéria que, simultaneamente, acalma e estimula o sistema nervoso. Depois dos cinquenta anos, é uma das questões mais sérias da vida. Eu respondo-lhe com espasmos na coronária e a decisão de assim prosseguir, até à morte. Não hei-de renunciar a este veneno amargo, porque não vale a pena. Dizes que não é assim tão difícil desacostumarmos?... Claro, é lá agora difícil. Eu também consegui, e não foi só uma vez, enquanto valeu a pena. O mal é que pensava todo o dia no cigarro. É preciso olhar também para isto, um dia. Temos de nos render, face à nossa própria fraqueza e se precisarmos de uma droga, convirá pagar o preço. Então, tudo se torna mais simples. Dizem-me: “Não és um herói.” E eu respondo: “É bem possível que não seja um herói, mas também não sou um cobarde, porque tenho a coragem de viver as minhas paixões”»
A questão das paixões não pode ser avaliada por valores mercantis, como «valeu a pena», em termos de ganhos e perdas: trata-se apenas se queremos fazer uma coisa e se a fazemos ou somos cobardes e nos deixamos ficar na antecâmara da emoção. No factura final, o corpo está sempre em cheque: vergado à solidão ou recordando o arrebatamento do amor. Portanto arrisquemos uma aposta alta de vez em quando - a sorte favorece os audazes. Dizem...