domingo, 31 de maio de 2009

A Dor de Ser Quase


Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou... -
Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

Fado


«Deste-me um beijo e vivi.

Da força que veio de ti encontrei a fé perdida.

E o meu corpo, feito grito,

Pediu mais vida à vida.»

Domingo




Um ramo de cravinas e um ramo de boca-de-lobo.
E a palavra casa.

Diário de uma Queda




Apaixonei-me, outra vez. Este ano, outra vez, primeiro pela Dorothy Parker, irmã de sarcasmos agridoces. Ontem pela Clarice Lispector. Um fim-de-semana de encontro, companhia na cama, a euforia de um sorriso que chora mas que consegue ainda rachar a solidão. Apaziguar a perturbação pelo testemunho da beleza que tortura e perde e obriga à queda.

(A uma queda a que me entrego à espera do embate, do momento final do crash. Mas a queda demora, cair é cair sem parar, talvez nunca bata no fundo, talvez já tenha batido - vivi a noite mais longa da minha vida, triste e alerta, envelheci muitos anos, não sabia que havia noites assim tão claras, loucas e tristes, consegui arrastar o meu corpo destroçado até casa e deitá-lo naufrágo na cama - talvez não haja fundo. Talvez bater no fundo seja dizer bati no fundo. Ou talvez bater no fundo seja ficar sem palavras, possuído por um silêncio imemorial. E se um dia não conseguimos continuar? E se um dia nos entregamos à delícia de não querer sobreviver, de não querer ultrapassar, esquecer, matar e morrer? Como parar de sentir, atropelar o sentimento de modo implacável sem lhe dar sequer a oportunidade de um último espasmo? E se um dia o sentimento nos possui, arrasta pelos cabelos e não quer desisitir de nós?)

O Verbo fez-se carne e veio aquecer o meu corpo. Prende-me à cama numa preguiça sensual de cabelos em desalinho e doces vincos na pele, vira-me do avesso e murmura «O meu nome é legião».

terça-feira, 26 de maio de 2009

Temor e Tremor



«Ela tinha mais subordinados além de mim. Eu não era a única pessoa que ela odiava e desprezava. Podia ter martirizado outras pessoas. Ora, ela não exercia a sua crueldade a não ser comigo. Isso devia ser um privilégio.
Devia ver nisso uma eleição.
[…]
Cara tempestade de neve, se eu puder, com tão pouco, ser o instrumento do teu gozo, está à vontade, ataca-me com os teus flocos ásperos e duros, com as tuas pedras de granizo talhadas como sílex, com as tuas nuvens tão pesadas de fúria, aceito ser a mortal perdida na montanha, sobre a qual eles descarregam a sua cólera, recebo em pleno rosto os seus mil perdigotos gelados, não me custa e é um belo espectáculo a tua necessidade de me ferir a pele à força de insultos, disparas pólvora seca, cara tempestade de neve, recusei que me vendassem os olhos face ao teu pelotão de execução, pois há muito que esperava ver o prazer no teu olhar.»


Há algo de erótico na luta de morte entre uma vítima e o seu carrasco. O ódio é um acto de eleição, semelhante à paixão, requerendo a mesma energia, esforço e astúcia.

Good Night & Good Luck




Veneno. Vómito.
Tenho um grito impossível dentro de mim.
Queria tanto, tanto expulsá-lo.
Mas não consigo odiar, não consigo morrer.
Vasculho a história à procura da raiz do mal.
Quem me fez, mal?
A menina gosta de dramas. Vá lá, confesse.
Nasci a 11 de Setembro, filha do ressentimento e de afectos por cumprir,
Tive dois irmãos,
Com um conheci a comunhão e a traição,
Éramos camaradas de trincheiras, dormíamos juntos,
Sonhávamos longe os dois,
Atravessávamos pântanos e campos, roubando frutas e um futuro triunfante,
Fumávamos a solidão e ríamos de todo o mal.
Pensávamo-nos imunes.
Mas a infância passou e sobreveio o desgosto.
O desencontro. Restaram os livros e os cães.
O outro irmão só o conheci anos mais tarde no desamparo.
Quando ele me aceitou como pessoa e pude enfim ter uma voz.
Ao meu pai, escrevi uma carta de amor a pedir tréguas.
Obtive silêncio e uma palmada nas costas:
Desconhecemos como quebrar a ausência que nos afastou.
E a culpa de quem? Tua, que nasceste primeiro?
Ou minha, que compliquei o teu fracasso?
A minha mãe continua surda,
Desfia o dia inteiro punhaladas de agulha na minha pele.
E se me dói é porque sou mesmo igual ao meu pai.
Um sangue que é conhecido por não chorar em funerais.
Um sangue mau e amargo que nem os mosquitos gostam de picar.
A voz da minha mãe dentro da minha cabeça a martelar.
A insistir na minha derrota, para me provar que não há saída.
E eu a correr, às cambalhotas, aos trambolhões,
A rir de impertinência e desafio de todas as regras e convenções.
Cresci perfeita, forte, saudável e fatal.
Num país sem nome nem emoções.
O meu avô ensinou-me que nada estava definido à partida,
Que tudo era possível.
O meu pai morreu de overdose,
Os ombros perderam as asas, ficou apenas a pergunta:
Onde está o banquete que nos prometeram?

Mais tarde, o descontrolo, o desejo a ultrapassar-me,
Veloz e furioso de vingança.
Queria tanto, tanto chorar. Doer-me e poder apontar a dor.
É aqui senhor doutor. Agora, cure-me.
Mas não. Temos tempo, diz o doutor.
Tempo para quê?
Tempo para perder tempo.
Tempo para agonizar. A dor é minha, não é?
Não fiques chateada, pequenina.
Custam-nos cada vez mais os esforços pelos outros.
Já nos pesa tanto o corpo quando nos levantamos de manhã
Ou quando nos deitamos, bebidos pela sede de amor.
E eu só me apetece gritar: à merda com toda essa covardia!
O meu irmão asfixia na gaiola dos dias normais,
Então só ele é que é vil? E a gente?
Se não te consigo perdoar, é porque não te mereci.
Deixa de beber: és tão volátil que o álcool não te convém.
Porque luto tanto contra isto?
Os encontros são cada vez mais raros e curtos
Perdi a inocência.
São, no entanto, mais intensos.
Trazem em si a força dos últimos fôlegos.
É disto que se faz a grande literatura, dizem.
Partiu-se qualquer coisa.
Uma máquina só se revela quando deixa de funcionar.
És linda, porque causas sofrimento e também sofres.
Não quero sentir mais.
Quero só dormir e acordar com a alma despida.
Mais leve. Mais nova. Menos flácida.
Matar o veneno da esperança.
Aceitar que ninguém virá e que é preciso cozinhar
Para não morrer de fome. De sede. De frio.
Mas, no final das contas,
Nada disto tem importância.
São precisos dias maus.
Para que possam haver dias bons.
Até amanhã.

domingo, 24 de maio de 2009

Higiene do Assassino



«Gostaria de lhe ter ensinado que, estrangulando Léopoldine, eu lhe poupara a única morte verdadeira, que é o esquecimento. Você considera-me um assassino, quando eu sou um dos raríssimos seres humanos que não matou ninguém. Olhe à sua volta e olhe para si mesma: o mundo está cheio de assassinos, ou seja, de pessoas que esqueceram aqueles a quem dizem ter amado. Esquecer alguém: já pensou no que quer isto dizer? O esquecimento é um gigantesco oceano onde navega um único navio, que é a memória. Para a imensa maioria dos homens, esse navio reduz-se a um miserável bote que mete água à mínima ocasião, e cujo capitão, personagem sem escrúpulos, só pensa em fazer economias. Sabe no que consiste essa ignóbil palavra? Em sacrificar quotidianamente, entre os membros da tripulação, os considerados supérfluos. E sabe quais deles são considerados supérfluos? Os patifes, os maçadores, os cretinos? Nada disso: os que são atirados pela borda fora são os inúteis, aqueles de quem já nos servimos. Esses deram-nos o melhor de si mesmos: que mais nos poderiam, pois, dar? Vá, nada de piedade, limpemos a casa e zás! Atiram-nos da amurada, e o oceano traga-os, implacável. E aí tem, minha cara menina, como se pratica com toda a impunidade o mais banal dos assassínios.»


Certas vezes, dou comigo a pensar que sou uma espécie de deficiente emocional, incapaz de ultrapassar as perdas, incapaz de fazer sentido da minha história. Parece-me que perdi qualquer coisa, talvez a imunidade contra a vida e a dor. Tornei-me humana, demasiado humana, nos ombros não carrego mais o peso etéreo das asas mas a marca do esquecimento. Das punhaladas no meu peito. Porque esquecer é isso: apunhalar o próprio peito na tentativa de expulsar uma ocupação.

Como se esquece alguém a quem um dia demos o significado da rosa e de todas as outras coisas humanas? O esquecimento é uma educação para a tristeza. Recordo um poema de Rainer Maria Rilke que um dia amei e decorei, para o esquecer durante anos.


«É certo ser estranho não mais habitar a terra,
não mais agir conforme o que mal acabáramos de aprender,
não mais dar às rosas, e a todas as outras coisas identicamente promissoras
o significado do humano futuro;
não mais ser o que se tinha sido em infinitamente angustiadas mãos,
e abandonar até o próprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado.

É estranho não mais desejos desejar.
Estranho, passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,tudo o que antes tinha unidade.
Estar morto é laborioso e cheio de recomeços,

até que aos poucosmos apercebamos da eternidade. - Mas todos os vivos
cometem o erro de fazer distinções demasiado rígidas.

Os Anjos, diz-se, não sabem muitas vezes se se movem
por entre os vivos ou por entre os mortos. A eterna corrente
consigo arrasta incessantemente todas as idades,
através destes domínios, e o seu som a ambos se impõe.
Afinal, de nós já não precisam aqueles que tão cedo nos foram arrebatados,
suavemente se vai perdendo o gosto pelo que é terreno,
tal como ao crescernos desprendemos da doçura do peito materno.
Mas nós, que de tão grandes mistérios necessitamos, nós para quem o luto
é tão frequentemente a fonte do feliz amadurecimento - : poderíamos sem eles existir?»

Tinha 16 anos quando aprendi este poema. Pensei que falava da morte, da morte que todo o esquecimento traz. Porque a verdadeira morte é o esquecimento: morremos quando esquecemos alguém e só morremos mesmo quando ninguém estranha mais a não circulação do nosso corpo por aí. Quando nos tornamos apenas restos de um corpo que precisa de uma inscrição para avisar de que aí jaz. Que um dia cá esteve.


Recordo sempre tudo, afinal. A minha história é uma antologia de esquecimentos falhada.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Arquipélagos Aquáticos



«Um homem pode estar doente, mais gravemente, ainda do que este, e ter o seu momento de felicidade, qual seja, tão só o de se sentir como uma ilha deserta que uma ave sobrevoou, de passagem apenas, trazida e levada pelo inconstante vento.»


Somos ilhas à deriva, atravessadas por breves momentos pelo encontro entre dois seres. O resto é apenas a memória desse momento excepcional de luz e beleza. E a procura e esperança na possibilidade de repetição. Recordarei sempre uma tarde de tempestade e trovoada, em que três amigos se abrigaram num toldo perto da escola onde me deseduquei com afinco, e fomos um. Completamente encharcados pela chuva e pelo encontro sublime que ameaçava rasgar os nossos peitos e cortar definitivamente a condição imposta de ilhéu. Era cedo demais então para saber que um dia poderia ser tarde demais. Não conhecíamos as armadilhas do tempo nem a raridade e brevidade dos arquipélagos.


Convosco aprendi também a delícia da palavra amizade e reencontro e sempre que vos olho, relembro e revivo o momento aquático e sublime daquela tarde de tempestade. Quando morrer, se houver um flashback, esse momento estará lá certamente.

Endgame



Gostava de te marcar de alguma maneira. De uma maneira profunda e silenciosa, grave, para que nunca mais te pudesses esquecer do meu nome, do meu cheiro, do bem e do mal que carrego sobre os ombros. Gostava de te marcar de alguma maneira. A quente e a seco, como um ferro em brasa. Sem dó nem piedade, apenas a liberdade sem limites da perversão. Para que não pudesses continuar a tua vida, incólume, com a expressão de quem conhece tudo sobre a vida, as pessoas e está cansado. Gostava de te oferecer a minha imagem como fantasma e alucinação.
Conheço apenas as palavras fogo e incêndio, ferida e cicatriz. E a vontade de te marcar. De alguma maneira. De preferência, de uma maneira grave. Para que a possibilidade de perdão fosse impossível. Marcar-te de um modo irreversível e sem volta. De preferência na carne, que é onde nos doemos mais. Onde me dói mais a tua ausência. Marcar-te. Para que nunca mais parasses de sangrar, para que te tornasses um ser maculado, jamais absolvido. Eternamente condenado comigo. A mim.

Gostava de te marcar. Para que a minha profundidade ficasse eternamente gravada na memória da tua pele. Para que pudéssemos partir juntos e estilhaçados em mil aventuras de fumo e incenso. Perdermo-nos um dentro do outro em insónias incendiárias. Fogos fátuos, por fim regressados a casa, dormindo abraçados durante a queda. Feridos e juntos. Gostava de te marcar. De terminar contigo. Para sempre e de uma vez por todas.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Está tudo certo, Aníbal!


Mais um jantar com o Aníbal, o outro e estou convencida que há um gene qualquer de insanidade grave acentuada na minha família. A explicação genética torna a coisa bastante mais confortável.

«Umas pessoas são mais complicadas, outras menos. E, no fundo, está tudo certo.»

E está mesmo, Aníbal.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Também a morte foi viciada


Nada tiene que ver el dolor con el dolor
nada tiene que ver la desesperación con la desesperación
Las palabras que usamos para designar esas cosas están viciadas
No hay nombres en la zona muda
Allí, según una imagen de uso, viciada espera la muerte a sus nuevos amantes
acicalada hasta la repugnancia, y los médicos
son sus peluqueros, sus manicuros, sus usurarios usuarios
la mezquinan, la dosifican, la domestican, la encarecen
porque esa bestia tufosa es una tremenda devoradora
Nada tiene que ver la muerte con esta imagen de la que me retracto
todas nuestras maneras de referirnos a las cosas están viciada
sy éste no es más que otro modo de viciarlas.

Enrique Lihn, Diario de Muerte

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Blue Times


Que fazer quando todos os pilares em que assentámos o nosso optimismo e verdade caem por terra como marionetas inválidas e abandonadas subitamente? Que fazer quando a vida se torna uma paisagem sem novidade que contemplamos com um distanciamento cansado? Onde ir buscar forças para continuar a alimentar os nossos sonhos?Há momentos em que nos sentimos vazios e ficamos assustados com a profundidade encantada de abismos que nunca suspeitámos tão vertiginosos.


A tristeza é viciante e possui braços reconfortantes, que nos embalam num sono manso. Ficar triste é muito mais fácil do que espernear, do que ripostar. Será que a atitude correcta é aceitar o curso das coisas, sob pena de nos tornarmos conformados, ou será que devemos batermos numa guerrilha contra a agonia dos nossos sonhos, sob pena de nos tornarmos ingénuos inconfessáveis?De tanto olhar as coisas de todos os pontos de vista, em busca de um critério de justiça eficaz, acabei por me perder...




"Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez,


Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.


Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.


Ah, canta, canta sem razão !

O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!


Ah, poder ser tu, sendo eu !

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso ! Ó céu !Ó campo ! Ó canção !

A ciência pesa tanto e a vida é tão breve

!Entrai por mim dentro ! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve !

Depois, levando-me, passai !"


Queria ser como a ceifeira de Fernando Pessoa, sempre a cantar, a fluir a vida, escapando eternamente às meandros armadilhados do pensamento, eternamente adiando a morte do instante presente. Mas só aos fins de semana ou ao entardecer. Ao entardecer seria perfeito.

Noites Brancas - Das Memórias de um Sonhador



Porque qualquer trabalho necessita de ser feito com vontade, exige o amor do trabalhador, exige uma entrega total. Haverá, afinal, muita gente que encontrou a sua vocação? […] Então, nos caracteres ansiosos de actividade, mas fracos, femininos, ternos, nasce a pouco e pouco aquilo a que se chama «sonhadorismo», e o homem deixa de ser homem, torna-se numa espécie esquisita… - o sonhador […] A realidade produz no coração do sonhador uma impressão grave, hostil, e então apressa-se a meter-se no seu cantinho secreto e dourado, que na realidade é, não raro, poeirento, desmazelado, desarrumado e porco. A pouco e pouco, o nosso rebelde começa a alienar-se dos interesses comuns e, gradualmente, imperceptivelmente, começa a embotar-se nele o talento de viver na vida real.”

Dostoievski, Crónicas de Petersburgo, 1847


“é verdade que às vezes tenho momentos de uma amargura insuportável, insuportável… Nesses momentos ponho-me a imaginar que nunca serei capaz de começar a ter uma vida verdadeira, porque são momentos em que perco o tacto e o olfacto do verdadeiro, do real; porque chego a amaldiçoar-me a mim próprio; porque, depois das minhas noites fantásticas, vêm os horríveis minutos do desembriagamento! Entretanto, ouço como marulha e gira no turbilhão da vida a multidão humana, ouço, vejo como vivem as pessoas – vivem na realidade; vejo que para elas a vida não é proibida, que a vida delas não se vai desvanecer como um sonho, como uma visão […] A alma já quer e já pede outra coisa! Inutilmente remexe nas cinzas o sonhador, nos seus sonhos antigos, procurando nas cinzas ao menos uma faísca, uma brasa em que sopre e acenda uma chama, para aquecer com o fogo recuperado o coração arrefecido e ressuscitar nele tudo o que dantes lhe era tão querido e lhe tocava a alma, que lhe fazia ferver o sangue, que lhe arrancava lágrimas dos olhos, que tão luxuosamente o iludia! […] Tornar-se-á pálido o teu mundo fantástico, vão esmorecer os teus sonhos, murchar, cair como folhas amarelas das árvores… […] Que triste ficar sozinho, completamente sozinho, sem ter sequer o que lamentar – nada, absolutamente nada, porque todo o perdido era nada, um zero estúpido, nada mais que uma ilusão!”

E que faremos no dia em que não formos mais capazes de sonhar? Com que veneno ou remédio alimentaremos a alma?