terça-feira, 19 de outubro de 2010

COM O DIABO NO CORPO



Um amor adúltero entre François, de dezasseis anos, e Marthe, de dezanove, casada com um soldado. A guerra serve de pano de fundo ao desvario dos amantes, sentida como um longo período de ociosidade e poesia. Ao conhecer Marthe, o rapaz encanta-se de imediato com a sua imprudência e gosto por Baudelaire e Verlaine. O amor é acompanhado por uma escalada do sentimento de tirania pelo ser amado. François enleia-se cada vez mais no amor, quanto mais acredita não amar Marthe, incapaz de se vergar aos códigos sentimentais, por ingenuidade. «Os momentos em que não podemos mentir são precisamente aqueles em que mais mentimos, sobretudo a nós próprios» (p. 63).


Na repetição dos encontros, os amantes descobrem o êxtase: «Não é na novidade, mas sim no hábito, que encontramos os maiores prazeres» (p.46). François sente-se como uma criança que dá um brinquedo a si própria, um brinquedo a quem pode fazer o que quiser, até mal, se o desejar. A cada novo dia, François testa os limites do amor e da entrega de Marthe, ébrio com os recém-adquiridos poderes da paixão. As loucuras da carne parecem aliviar os distúrbios da alma, desgastando uma paixão incapaz de se gastar pela submissão de Marthe, que perdoa todos os ataques de ciúme, crueldades e mentiras do rapaz. Uma submissão que resulta da certeza da sua paixão, enquanto a crueldade do seu parceiro resulta da sua duvida e incapacidade de aceitar que a ama.

«Mas o amor, que é o egoísmo a dois, sacrifica tudo a si próprio e vive de mentiras» (p. 59). O fim é trágico e Marthe morre – como morrem todos os nossos primeiros amores, para que a vida possa continuar, ainda que empobrecida pela recordação desse astro breve, é certo. A morte da amada não traz uma elevação redentora do sentimento, pelo contrário, a natureza egoísta do amor de François revela-se aí em toda a potência.

«Marthe! O meu ciúme seguia-a até ao túmulo. Eu desejava que nada houvesse depois da morte. É insuportável que a pessoa que amamos se encontre rodeada de outras companhias numa festa onde nós não estamos. O meu coração tinha aquela idade em que ainda não pensa no futuro. Era exactamente o vazio que eu desejava para Marthe, mais do que um mundo novo, onde pudesse juntar-me a ela um dia» (p. 140). O que importa não é que Marthe tenha morrido, mas sim a certeza de que ela tenha morrido chamando pelo amante.

«Quando Marthe dormia assim, com a cabeça encostada num dos meus braços, eu inclinava-me sobre ela para lhe ver o rosto envolto em chamas. Era como brincar com o fogo. Um dia em que me aproximei demais, sem, no entanto, o meu rosto tocar no dela, foi como a agulha magnética que passa um milímetro a zona interdita e se cola ao íman. A culpa é do íman ou da agulha? Era assim que sentia os meus lábios contra os dela. Marthe continuava com os olhos fechados, mas nitidamente como quem não está a dormir. Beijei-a, surpreendido pela minha própria coragem, embora na realidade tivesse sido ela que, mal eu me aproximara do seu rosto, puxara a minha cabeça para a sua boca. As suas mãos agarravam o meu pescoço. Não se teriam agarrado com mais fúria num naufrágio. E eu não compreendia se ela queria que eu a salvasse ou que me afundasse com ela» (p.45).

Fiquei a arder – saudades da desmesura que o primeiro amor apresenta e que nenhum mais nenhum nos traz depois. Porque nos tornámos cínicos, feridos e menos loucos. E, sobretudo, incapazes de ser salvos ou naufragar.

«Um homem desorganizado que vai morrer e não desconfia disso põe subitamente em ordem tudo à sua volta. A sua vida muda. Arquiva papéis. Levanta-se cedo e deita-se cedo. Renuncia aos vícios. Os seus familiares congratulam-se. Assim, a sua morte repentina parece ainda mais injusta. Ele teria sido feliz» (p. 139).

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