terça-feira, 19 de outubro de 2010

O CHÃO DOS PARDAIS


«Anne Frank morreu com quinze anos, quinze dias antes da libertação do campo para onde tinha sido levada. Se Deus não joga aos dados faz o quê?
(…)
Nós sobrevivemos ao horror pelo qual a família Frank e os amigos passaram. A humanidade sobreviveu. De forma imperdoável, porém. A menos que se constituam deveres.
(…)
Ele e Margarida eram quase recém-casados quando ele a levou ao anexo. Temos de ver isto porque não podemos ter a certeza que não repetimos. Nunca poderemos ter essa certeza. Os que perpetraram o horror eram em tudo iguais às vítimas, eram em tudo iguais a nós.
(…)
Os milhões de pessoas que morreram merecem que os deixemos em paz, dissera inesperadamente Margarida. Merecem que não precisemos deles para nos emocionarmos. Esse é o nosso único dever. Há neste momento milhares de pessoas escondidas por esse mundo fora e nós estamos aqui a visitar um sítio que foi tornado público só para satisfazer a curiosidade dos que querem ver para se emocionarem. Não devia ser permitido. Isto, as visitas aos campos, nada. Não é que não seja preciso ver. É que não devemos ver. Estamos obrigados a sentir para além do que os olhos vêem. A fé já foi inventada. É possível. Isto, os milhões de sapatos, os duches, os crematórios, são obscenos. Deviam ter sido arrasados. Nem sequer o pó desses sítios devia existir. Não se pode permitir a memória física do horror. Deixar que o horror tenha memória física é uma forma de o justificar. E não pode haver nunca justificação. Os visitantes procuram o descanso que nunca deveriam ter. Não há nada de nobre numa visita a um campo de concentração ou a este anexo. Não há solidariedade possível com os que sofreram, com os que foram deixados sofrer. Só nos chocamos com os factos sobre os quais não nos pode ser exigida responsabilidade alguma, com os factos em relação aos quais a nossa acção se tornou impossível. Precisamos da tranquilidade de saber que não nos pode ser exigido que actuemos. Que nunca poderemos ser acusados de termos sido cúmplices. Daqui a uns anos faremos museus às guerras que estão a decorrer neste momento. E iremos visitá-los só para nos chocarmos, para nos emocionarmos. Só temos de esperar que a nossa acção se torne impossível, que a nossa inacção se torne justificável, para que passemos a exigir que nos reconheçam como solidários. É só preciso esperar que o horror acabe para podermos ser completamente contra ele. Para estarmos dispostos a fazer tudo o que pudermos para acabar com ele. Mais tarde poderemos até chegar ao ponto de querermos compreender como é que tudo se passou, o que é que se passou. Tudo em nome da humanidade, dos abismos negros da humanidade.»

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