domingo, 8 de maio de 2011

«o happy end é coisa dos cinemas»



FALA CIRCE

Três e meia da manhã.
É inútil procurar o candeeiro.
No estuque da insónia,
o filme recomeça.
Que fim será o fim?

Pretéritos prazeres,
cigarros consumidos
– é isto o coração:
um cinzeiro de metal?
Preferia não fumar.

Quero tanto o teu amor
que termino a odiar-me.
Quem me dera ser o Rambo,
saber sempre o que fazer ao inimigo.
Não sei por que sorrio,

quando tudo o que me resta é a magia
que me traz o Halcion: sonhar
que não existes, nem o filme,
nem o fumo, nem o frio, nem o fosco
cinzeiro de metal.



José Miguel Silva

Ulisses Já Não Mora Aqui




«ONDE A NOITE CAI SOBRE ANTUÉRPIA»

há uma tal ventoinha no tecto soprando
um possível começo um hotel um homem
bebendo whisky no balcão do bar

o gelo roça no vidro do copo
o calor atrasa as pás da ventoinha
uma mulher lê uma carta junto à janela sentada
num esquecido cadeirão de vime

é meio -

-dia ouve-se lá fora a claridade de um motor
de automóvel europeu fazendo fazendo a curva de uma rua inquieta
um pouco de cinema algum pó

tem o longínquo nome de Kikwit esta cidade
o nome do hotel não sei - Congo Belga anos cinquenta
a película retrata um tempo colonial

não conheço esta história
sei apenas que a mulher tem um vestido azul
que a carta foi tecida na distância de Antuérpia ao pôr do sol
junto ao porto por um homem que a já não quer

a mulher tem um cigarro ao fim dos dedos a cinza cai
a perna cruzada

o joelho branco apontado ao janelão
que dá para a rua

o homem no balcão é o dono do hotel
é português usa fato gravata impecável no pescoço suado
tem um livro dentro do bolso do casaco e espera alguém
olha a mulher sem olhar a mulher
dentro dela cai a noite sobre Antuérpia
relê sempre a primeira frase que diz

esteve um dia lindo no teu sorriso

das histórias que desconheço gosto muito desta
um lóbi de hotel uma cidade chamada Kikwit nos anos cinquenta
um homem uma mulher ele impaciente em whisky ela
triste em tabaco

não se conhecem nem se vão conhecer
o homem tem um livro no bolso a mulher o coração partido

entre o bar e o cadeirão de vime há um verso impossível

depois alguém entra a porta abre fecha
nesse intervalo um ruído de vozes calor poeira e comércio
invadem a placitude do lugar

o homem pousa enfim o copo no tampo do balcão
a mulher nem repara (esteve um dia lindo no sorriso dela
há muito tempo)

o português dirige a maior simpatia à
personagem que acaba de entrar - é Jacques-Yves Cousteau
o conhecido oceanógrafo francês

trocam cortesias
o gesto do português convida-o a sentar-se
apontando uma das cadeiras
o livro sai do bolso e vai estender-se na mesinha onde
acabam por deter-se

Cousteau aceita a caneta do português
abre na folha de rosto escreve o seu nome
debaixo do nome desenha um peixe

a mulher amachuca um pouco mais a carta
no gesto de a guardar na mala
levanta-se sai do hotel

consigo vê-la dobrando o edifício à direita
não sei para onde levou o começo de um choro
não sei onde leva aquela rua
desconheço toda a geografia da cidade africana

bem como o fim desta história
apenas que Cousteau subiu para um dos quartos
que o português sentado sorriu na direcção do tecto
com o livro encostado ao peito
desapertou um pouco a gravata
soube-lhe bem o inexistente sopro da ventoinha



Miguel-Manso

Contra a Manhã Burra

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