sábado, 27 de agosto de 2011
Tanatografias
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
And if it is not love then it's the bomb, the bomb...
Depois de muitos dias intensivos de estoicismo apercebi-me que continuo extremista. Depois de ter dedicado alguns anos à investigação afincada do projecto hedonista, tomando o prazer e o riso como missão, retornei a Lisboa com a minha revolução sexual concluída, as finanças arruinadas e com os nervos algo descompensados. Há este problema de fundo com a via do êxtase: toma-se o momento presente como absoluto e tudo o resto vai colapsando. Mas é preciso ter a coragem de destruir, já dizia o Stirner, e não lamento os dias esbanjados.
Decidi então experimentar o outro extremo, a atitude estóica, ocupando os dias a ler, a trabalhar e a cozinhar. Resultado: tornei-me uma dona-de-casa com alguns laivos intelectuais e aprendo a persistir e a contrariar a minha inquietação. A coisa corre bem. Mas chego à conclusão que a doutrina do meio-termo enunciada por Aristóteles é a mais acertada. Desde que me conheço que desprezo a palavra “moderação” mas a minha aprendizagem revela-me que é preciso ir por aí para viver bem, ou viver menos mal. Ao clamor tchekhoviano “É preciso trabalhar!”, é preciso adicionar “É preciso conhaque!” Em nome da saúde mental, é preciso ter horários para servir o dever narcóticos e horários para desatinar e descompensar: é tudo, com efeito, uma questão de dosagem.
E por isso ontem, segui leve pela noite adentro: dançar, dançar para cansar o corpo e aliviar a cabeça que pensa sempre demais do que deve. Voltei a reencontrar a beleza nocturna nos corpos que se agitam como quem empenha todo o vigor das últimas forças. São corpos que apostam o sono em nome de uma alegria que os invade na claridade pela sua ausência, mas que não desistem de acreditar e procurar. Uma cambada de crentes popula os bares e uma oração diferente, uma oração da convulsão, sobe pelas raios eléctricos da noite. E ouvem-se as coisas mais bonitas porque a escuridão torna as palavras mais espontâneas: um tipo com cara de anjo despede-se às seis da manhã dizendo que vai para o seu quarto beber uma garrafa de vodka e desmembrar uma grama de cocaína; tem um ar santo, parece um daqueles monges habituados a visões beatíficas. “É a minha cena. Ando a desfrutar imenso da minha relação comigo”, diz antes de partir, mas não como quem se justifica. E ao vê-lo ir-se, sabe-se que, apesar de utilizar meios travessos (e quem não os utiliza, feitas as contas?), ali vai um tipo em paz consigo, mesmo que momentânea. E vêem-se as coisas mais despropositadas, subitamente justificadas por uma aura de sonho que envolve a visão e a torna estranhamente mais turva mas também mais curva. No Copenhaga, o cinema português dança com passos histéricos ao som do Hit the Road Jack e insinua-se em ti uma suspeita de que talvez nem tudo esteja perdido neste país ! Tens os pensamentos planos e suaves, esqueces as horas, os planos de regressar e fazes all-in com mais um Jack Daniels, saboreando o contraste do gelo nos lábios contra o calor que ameaça o peito. Porque sabes, de um modo seguro e íntimo que tudo corre bem e os vivos estão, afinal, ainda vivos e fortes.
E depois há o dia a raiar, as gaivotas girando loucas num céu que pica, o sol vigoroso das nove horas que reinicia o trabalho da criação. Mas é domingo, ainda há calma, o mundo dá uma pausa. E entras finalmente no táxi e casa é agora uma palavra querida. E aí acontecem sempre as conversas mais hilariantes e profundas, porque os deuses, depois de mortos pelo progresso das luzes e das fábricas, reencarnaram taxistas. Deus e o Diabo, a coisa é uma roleta, nunca se sabe quem te leva a casa. E o taxista pergunta se te divertiste. Dizes sim, com um sorriso fino. Ele diz que estás com um ar feliz. Respondes que estás a pensar no amor. Ele pergunta porque voltas então para casa sozinha. Não tens essa resposta, Deus e o diabo são ambos matreiros nas perguntas que te fazem. Na incerteza avanças que não sabes, que se calhar o melhor é ele fazer inversão de marcha, voltar ao ponto onde te apanhou. E então ele diz: “Não, relaxa, ouve aí essa morna angolana e vais para casa descansar”. E ele aumenta o som, e tu encostas a cabeça, cabelos ao vento fresco, olhos sonhando as avenidas e o rio, os poros todos a ouvir a voz africana mais sedosa do mundo. E sabes que tiveste a dose de beleza que te vai permitir mais dias calmos, sem sentires que esfacelas as asas contra as barras da gaiola. E que, desta vez, voltas a casa guiada por Deus.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
"Nunca disse que fosse sempre um erro entrar no país das fadas. Disse somente que era sempre perigoso" (Chesterton)
"Aí tendes, malditos sejais, saciai-vos com este belo espectáculo!" (Platão)
it's all so quiet, ma...
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
"Um anjo no Inferno voa na sua própria pequena nuvem de Paraíso" (Eckhart)
“Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.” (pag. 27).
Já quase nada lhe interessa. Mantém aventuras esporádicas com belos rapazes como um cuidado de higiene. Resta-lhe apenas a literatura. Não fosse a guerra, ter-se-ia ocupado das coisas belas e calmas, fazendo ou ensinando literatura. E gostaria de ter tocado piano. “Tocar só para mim, em casa, ter-me-ia cumulado de satisfação. Bem entendido, ouço muitas vezes música, e nisso tenho um vivo prazer, mas não é a mesma coisa, é um prazer de substituição. Tal como os meus amores masculinos: a realidade, não coro ao dizê-lo, é que teria preferido decerto ser uma mulher. Não necessariamente uma mulher que vivesse e agisse neste mundo, uma esposa, uma mãe; não, uma mulher nu, deitada de costas, com as pernas abertas, esmagada sob o peso de um homem, agarrada a ele e trespassada por ele, afogada nele e tornando-se o mar sem limites em que ele mesmo se afoga, prazer sem fim, e sem princípio também. Ora não foi assim. Em vez disso, dei comigo jurista, funcionário da segurança, oficial SS, e depois director de uma fábrica de rendas. É triste, mas é como é.” (p. 29).
Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios. E este homem não está abrigado no homem que é porque os abrigos do humano foram calcinados pelos fornos crematórios.
E uma odisseia não pode efectuar-se sem o amor por uma mulher distante. “Uma só, mas mais do que tudo no mundo. Ora essa, justamente, era a que me estava proibida. É bastante concebível que ao sonhar ser uma mulher, sonhando-me um corpo de mulher, eu a procurasse ainda, quisesse aproximar-me dela, quisesse ser como ela, quisesse ser ela. É inteiramente plausível, ainda que nada mude ao caso. Dos tipos com quem fui para a cama, nunca amei um só que fosse, servi-me deles, dos seus corpos, é tudo.” (p.29)
terça-feira, 16 de agosto de 2011
Apetece muito uma odisseia literária
domingo, 14 de agosto de 2011
Há uma gravidez do pensamento no tédio
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência
Sigo nietzscheana.
Friedrich Wilhelm Nietzsche, A Gaia Ciência
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Lê-se numa noite e deixa mazelas de graça
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu Peito.
E traí e fui traído.
e duvidei, impacientemente, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).
Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.
Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.
Manuel António Pina
It's all right, ma...
Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.
Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.
Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.
Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.
Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.
Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.
Manuel António Pina
sábado, 6 de agosto de 2011
sexta-feira, 5 de agosto de 2011
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Confesso que voei
eu fui capaz de algum voo
– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –
devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.
E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.
Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.
Voei, está voado.
Nada de nostalgias.
A.M. Pires Cabral
Metereologia fodida
quarta-feira, 3 de agosto de 2011
Descansa em mim
Alguém gritava o meu nome pela janela enquanto eu te ordenava:
Cala-te e fode-me,
Depois, partiste rude e indelicado, murmurando semelhanças com actrizes de Hollywood que eu desconhecia.
No dia seguinte acordei dorida, a memória da loucura impressa em sangue pisado nas minhas vértebras. Alguém me disse que eu andava a brincar com tudo isto e isso alegrou-me ainda mais. E o tempo foi fluindo, com o vento de feição sobre os selins da esperança.
Tornei a reencontrar-te no teu despropósito e qual soldado da legião estrangeira, pensei que podia sair incólume. E foi como uma febre veloz, sem pausas para convalescença. Os dias abundavam de fomes e ameaças de enfarte e o meu corpo inquieto cirandava pela cidade. Só no teu olhar insistente encontrava a calma. E eram as palavras – sempre as palavras - as palavras mais belas, tão longamente queridas, que bebi com sedes arcaicas. Delirante, desafiei os deuses e prometi-te eternidades exclusivas. Porque eu era um livro de pernas abertas que só tu conseguias ler.
Falavas de amor, de queda, de anjos e eu julguei que todos os campos bombardeados que tinha atravessado serviam apenas para te amparar. São malícias da inocência, perdoa, meu querido, com tanto ruído não percebi que também eu caía e que os meus braços jamais seriam raízes.
No apeadeiro final, restei paisagem acidentada nos estilhaços de uma janela. Fiquei a sós com a tarefa de me fiar mulher. Recusei os venenos amargos que me ofertavam e não tomei outros corpos como paliativos. Deixei-me estar quieta, muito quieta, a brincar com a morte. Durante dias a fio meditei nos cães de caça e na fome que os treina.
E três vezes a pergunta bateu à porta:
Quem te fez mal?
E três vezes a recusei com uma vírgula de ironia no sorriso:
Quem me fez, mal?
Apenas por caminhos travessos se alcança a ponta do desamor.
Parece que os gregos tinham razão e as paixões servem apenas para compor belos epitáfios. Por isso descansa em paz, meu amor. Dentro de mim. Não tenho outras águas para arrumar as saudades que restam.
Regresso sempre com o mesmo espanto pueril aos meus primeiros amores
Manhã de Embriaguez
“Ó meu Bem! Ó meu Belo! Fanfarra atroz em que não cambaleio. Cavalete féerico! Hurrá pela obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar. Este veneno vai ficar em todas as nossas veias, mesmo quando, regressada a fanfarra, formo devolvidos à antiga inharmonia. Ó nós agora tão dignos destas torturas, cumpramos fielmente a jura sobre-humana feita ao nosso corpo e à nossa alma gerados: esta promessa, esta demência! A elegância, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, banir as honestidades tirânicas, afim de que pudéssemos nosso puríssimo amor. Isto começou com uma certa náusea e isto acaba – não podendo assenhorear-nos já de tal eternidade, - isto acaba por uma debandada de perfumes.
Risos de criança, discrição de escravos, austeridade das virgens, horror destas caras e destes objectos, sagrados sejais pela recordação desta vigília. Isto começou com toda a grosseria, eis que isto acaba em anjos de fogo e de neve.
Breve vigília de embriaguez, santa!, quanto mais não seja pela máscara que nos deste! Afirmamos-te, método! Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos ASSASSINOS.”
Jean-Arthur Rimbaud