“Vistas de perto, as coisas passavam-se muito menos tranquilamente: os judeus que chegavam ao cimo da ravina, empurrados pelos askaris e pelos Orpo, uivavam de terror quando descobriam a cena, debatiam-se, os embaladores batiam-lhes com a chibata ou cabos de metal para os obrigarem a descer-se e a deitarem-se, já por terra eles continuavam a gritar e tentavam levantar-se, e as crianças agarravam-se à vida tanto como os adultos (...). Para alcançar certos feridos, era preciso andar por cima dos corpos, estes escorregavam de modo atroz, as carnes brancas e moles rolavam sob as minhas botas, os ossos quebravam-se traiçoeiramente e faziam-me tropeçar, eu atolava-me até aos tornozelos na lama e no sangue. (...), disparava quase ao acaso, sobre tudo o que via espernear, depois recompus-me e tentei prestar atenção, apesar de tudo era preciso que as pessoas sofressem o menos possível, mas de qualquer maneira não podia rematar senão os últimos, por baixo havia já outros feridos, não mortos ainda, mas que em breve o estariam. Não era eu o único cujos nervos não aguentavam, também alguns atiradores tremiam e bebiam entre uma e outra fornada. Reparei num jovem Waffen-SS, não sabia o nome dele: começava a disparar de qualquer maneira, com a metralhadora encostada à anca, ria horrivelmente e esvaziava o carregador ao acaso (...). Aproximei-me dele e sacudi-o, mas ele continuava a rir e a disparar ali diante de mim, arranquei-lhe a metralhadora e esbofeteei-o, a seguir mandei-o ir ter com os homens que reabasteciam os carregadores; Grafhorst mandou-me outro homem para o substituir e eu lancei-lhe a metralhadora gritando: “E faz-me isso como deve ser, entendido?!!” Perto de mim, outro grupo estava a ser trazido: o meu olhar cruzou-se com o de uma bela rapariga, quase nua, mas muito elegante, calma, com os olhos cheios de uma tristeza imensa. Afastei-me. Quando voltei estava ainda viva, semivirada sobre o dorso, uma bala saíra-lhe por debaixo do seio e ela arquejava, petrificada, os belos lábios tremiam-lhe e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os seus grandes olhos surpresos, incrédulos, olhos de ave ferida, e esse olhar cravou-se em mim, rasgou-me o ventre e deixou escorrer dele um jorro de serradurra, eu não passava de uma simples boneca e não sentia nada, e ao mesmo tempo queria de todo o coração curvar-me e limpar-lhe a terra e o suor misturados na fronte, acariciar-lhe a face e dizer-lhe que já estava melhor, que tudo correria da melhor maneira, mas em vez disso disparei-lhe convulsivamente uma bala na cabeça, o que bem vistas as coisas vinha a dar no mesmo, para ela em todo o caso não para mim, porque a mim a ideia daquele desperdício humano insensato invadia-me uma raiva imensa, desmedida, continuava a disparar sobre ela e a cabeça rebentara-lhe como um fruto, e então o meu braço soltou-se de mim e partiu só ele pela ravina, disparando para um lado e para o outro, eu corria atrás dele, fazia-lhe sinal com o outro braço dizendo-lhe que esperasse por mim, mas ele não queria, ria-se de mim e disparava sobre os feridos sozinho, sem mim, que finalmente esgotado, parei e comecei a chorar. Agora, pensava, acabou-se, o meu braço nunca mais voltará, mas para minha grande surpresa ali estava ele de novo, no seu lugar, solidamente preso ao meu ombro, e Hafner aproximava-se de mim e dizia-me: “Está bom, Obersturmfuhrer. Eu substituo-o.” (p. 125-127).
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