sexta-feira, 18 de novembro de 2011
"daqui ninguém sai sem cadastro."
NOTAS PARA O DIÁRIO
deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.
mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.
pois bem, mário — o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.
a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida — e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
Al Berto, in "horto de incêndio" assírio & alvim, 2000
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1 comentário:
Por coincidência andas a pôr os poetas dos meus anos 90(sou dos 70). Li "O Medo" inteiro já com o "Horto de Incêndio" lá dentro. Isto é tão desmesuradamente bom. Este livro já é marcado pela doença, lembro-me de viver isto quando ele foi entrevistado num "Escrita em Dia" da SIC apresentado pelo Francisco José Viegas (que hoje, enfim...). Grandes escritores se foram nessa altura.
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