Fome de
Knut Hamsun narra um período de fome que um homem passa em Kristiania (actual
Oslo). Um homem sem emprego e relações, de estômago vazio e cabeça cheia de
pensamentos alucinatórios, tenta desesperadamente escrever. É preciso que
escreva para que possa comer algo, mas sem comer, escrever é algo quase
impossível, uma experiência-limite.
A certo ponto, percebemos que
este homem passa fome não porque não tenha opção, mas por escolha, ou melhor,
por uma estranha compulsão interior que o obriga a respeitar os «sentimentos
nobres», a vigiar constantemente o seu pensamento e a a imagem que oferece de
si. A certo ponto, apaixona-se mas é incapaz de abandonar o «orgulho» e a
«decência».
“Aquilo
irritou-me, quase me chocou que ela me considerasse assim tão decente; enchi o
peito de ar, deixei o coração inchar e peguei-lhe na mão. Mas ela retirou-a
docemente e sentou-se um pouco mais afastada de mim. Com isso, a minha coragem
desapareceu de novo, senti-me envergonhado e olhei na direcção da janela (…).
Senti-me totalmente paralisado.
-
Já vê! – disse ela, - já vê que tenho razão: a você é possível assustá-lo com
um mero franzir de testa; é possível embaraçá-lo com uma simples e
insignificante mudança de lugar… - Ela riu, trocista, com os olhos
completamente fechados, como se também não suportasse ser observada.”
Paul Auster tem razão quando
afirma que o herói de Fome sofre de
uma doença de linguagem. O próprio o explicita quando se explica à rapariga: “na verdade, podia ter-se uma natureza
sensível sem que, por isso, se fosse louco; havia os que viviam quase de nada e
que morriam de uma simples palavra. E deixei-a perceber que eu tinha esse tipo
de natureza.” Está doente de palavras como «honra», «honestidade»,
«altruísmo», «abnegação», etc.. É por esta razão que amachuca uma nota de
dinheiro e a atira à cara de uma hospedeira. Uma nota que o poderia alimentar
durante dias.
“Ah,
ah! Pode chamar-se a isto «actuar, salvaguardando a honra»! Sem dizer nada, sem
dirigir a palavra à gentalha, amachucar simplesmente uma nota de dinheiro das
grandes, com toda a calma, e atirá-la às ventas do seu perseguidor. Podia
dizer-se que isto é «comportar-se com dignidade» Assim se levam as bestas!...
Quando
cheguei à esquina da Tomegatten com a Jernbanetorvet, os meus olhos começaram a
ver a rua a cintilar, a cabeça vazia começou a zunir e resvalei contra a parede
de um prédio. Não consegui avançar mais, pura e simplesmente, nem sequer
consegui manter-me direito. Fiquei em pé, tal como tinha resvalado contra a
parede, e senti que estava a perder os sentidos. A minha louca ira piorou ainda
mais com este ataque de esgotamento, levantei o pé e bati no passeio. Também
fiz outras tentativas para recuperar um pouco as forças, cerrei os dentes,
franzi a testa, fiz girar os olhos desesperadamente e comecei a sentir o
efeito. O meu pensamento tornou-se mais claro e compreendi que estava prestes a
morrer. Pus as mãos à frente e apoiei-me contra a parede, e a rua continuava a
dançar à minha volta. Comecei a soluçar de raiva e lutei contra a minha
desgraça com o mais íntimo da minha alma, mantive corajosamente esta posição,
para não cair de todo; recusava deixar-me sucumbir, queria morrer de pé.”
A fome auto-imposta será a
sua maneira de verificar a validade dos sentimentos «bons». Faz lembrar
Raskolnikov e Stirner. À maneira dos ascetas e mártires, ele escolhe a via da
dor; o prazer e o deboche seriam um teste menos honroso. Tanto pior para ele.
Abeira-se do colapso muitas vezes. Nenhum anjo lhe aparece para o salvar.
Resta-lhe reconhecer que,
morto o referente transcendente, esses «sentimentos» são vazios, palavras ocas
apenas, que traduzem absolutamente nada. Prazer e dor são completamente aleatórios.
Na ponta do garfo dessa refeição nua, o Nada e nada mais. Não se pode mais
louvar uma razão omnipresente e autofágica que martiriza a carne e faz do
pensamento veneno. Estamos sozinhos aqui e agora, sem caminhos certos, e vamos
ter de nos aguentar.
“Passou
uma carroça rolando lentamente, e vi que levava batatas, mas na minha raiva e
obstinação lembrei-me de dizer que não eram batatas, mas sim cabeças de couve,
e jurei furiosamente a pés juntos que eram couves. Ouvi nitidamente o que
dizia, mas persisti na mentira e continuei a jurar repetidamente, só para ter a
desesperada satisfação de cometer perjúrio. Deixei-me embriagar por este pecado
requintado, estiquei os dedos no ar e jurei, com lábios balbuciantes, em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em como eram cabeças de couve.”
5 comentários:
O que vale mais em “Fome” é o modo hipnótico como é escrito. Talvez fosse a única maneira num tema tão arriscado, onde os personagens ou não existem ou estão de passagem, onde nada acontece a não ser no estômago. Não fosse pela escrita e poderia muito facilmente cair no ridículo, no mais acabado aborrecimento. Como o Kafka que veio beber muito a Knut Hamsun: no tal tom hipnótico, na escrita na primeira pessoa, no desassombro, na estranheza do tema. Li há pouco tempo algures um desses escritores americanos dizer que o Kafka não sabia escrever porque não sabia desenvolver personagens, enredos, conflitos, etc. Como se toda a literatura se pudesse resumir a plot points...
não sei que crítico disse isso, mas acho que tanto o fome como o kafka têm enredo, no sentido em que a narrativa parte de um dilema, apresenta um clímax e encontra desfecho. o que acontece é que a acção acontece toda no intimo das personagens e a nível externo pouca coisa se passa. mas não podia ser doutro modo na modernidade: depois de tudo o que era sólido se ter desmoronado só resta narrar os sismos domésticos e comezinhos de cada um.
Não me recordo se foi critico ou escritor, se entretanto souber ou me lembrar deixo alguma nota acerca do idiota.
No geral concordo contigo, ainda assim tenho reservas em relação ao "só resta narrar os sismos domésticos e comezinhos de cada um." Acho que nos resta mais que isso ou talvez o teu raciocínio seja aqui demasiado definitivo. Beijinhos
para os autores em questão acho que era a única opção válida. também espero que reste mais do que isso.
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