domingo, 30 de setembro de 2012

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Dia de Outono

Senhor: é tempo. Foi muito grande o verão.
Nos relógios de sol estira as tuas sombras,
deixa que pelo prado os ventos vão.

Manda aos últimos frutos a espessura,
dá-lhes do sul ainda mais dois dias,
força a plenitude neles, vê se envias
ao vinho forte a última doçura.

Quem não tem casa agora, já não constrói nenhuma,
quem agora está só, vai ficar só, sombrio,
perder o sono, ler, escrever cartas a fio,
e a um ir e vir inquieto nas áleas se acostuma,
vagueando enquanto as folhas lá vão num rodopio.

Rainer Maria Rilke

terça-feira, 18 de setembro de 2012

um hino à noite

“O que é que, de repente, pleno de pressentimentos, brota debaixo do coração e sorve a doce aragem da melancolia? Também em nós te comprazes, obscura Noite. O que é que tu guardas debaixo do teu manto, que me toca a alma com uma força invisível? Um bálsamo precioso goteja da tua mão, de um molho de papoilas. Elevas as pesadas asas do nosso ânimo. Sentimo-nos obscuramente, inexprimivelmente comovidos (…). Tão pobre e tão pueril me parece agora a luz – que júbilo e que benção, ao despedir-se o dia – Assim, só porque a Noite aparta de ti seus servidores, semeaste na lonjura do espaço as esferas luminosas, para que testemunhassem da tua omnipresença – do teu regresso – no tempo do teu afastamento. Mais celestes do que aquelas estrelas cintilantes nos parecem os olhos infinitos que a Noite em nós abre (…). Glória à rainha do mundo, à grande mensageira de mundos sagrados, a do amor extasiado – é ela que te envia até mim – doce amada – amável sol da noite – eis que estou desperto – porque sou teu e sou meu – revelaste-me a Noite como Vida – tornaste-me humano – devora de ardor espiritual o meu corpo para que, etéreo, eu possa misturar-me contigo mais intimamente, e seja então a nossa noite de bodas.”


Novalis, Hinos à Noite

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Epifanias domésticas

A mão firmada sobre a laranja. A faca dividindo a laranja em duas metades. O espremedor devolvendo o som do real acolhedor. A consciência de ter novamente o meu corpo em casa, sólido, firme. Parada e segura em mim, a mão tremendo sobre a meia laranja, nada mais que isso. A luz da manhã a pico estirada alegre por azulejos e móveis enche-me os olhos de água. As lágrimas rolam pelo rosto aturdido pelo calor e vão fundir-se no sumo laranja. Recordo brevemente a minha quase-morte, as noites terríveis e silenciosas, outrora tão queridas. Uma descida longa, de início desejada com a arrogância de quem sonha o mundo de coração cerrado, mais tarde temida com cada poro. A difícil aprendizagem das camadas de sombra que compõem cada abismo que é um ser. Choro de gratidão. Como uma Eurídice, refazendo com passos ainda inseguros o caminho de volta para junto dos vivos. Sem Orfeu nem lira, acompanhada apenas por uma voz na rádio cantando os subúrbios de um passado perfeito em que se acreditou poder vencer sem jamais perder. Despejo o sumo no copo e enxugo as lágrimas com as costas da mão. Sento-me à mesa e sorrio do mistério de estar viva e das formas insuspeitadas da comoção. Suspeito que estou quase safa.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Madame Bovary é quase quase uma mulher de trinta anos muito orgulhosa…



“Com efeito, uma rapariga tem demasiadas ilusões, excessiva inexperiência, e o sexo é demasiado cúmplice do seu amor, para um jovem poder sentir-se lisonjeado; enquanto uma mulher conhece toda a extensão dos sacrifícios a fazer. Se uma é arrastada pela curiosidade, por seduções estranhas às do amor, a outra obedece a um sentimento consciente. Uma cede, a outra escolhe. Esta escolha não é imensamente lisonjeira? Armada com uma experiência quase sempre paga, por alto preço, com infelicidades, ao dar-se, a mulher experimentada parece dar mais do que ela própria, enquanto a jovem, ignorante e crédula, como não sabe nada, nada pode comparar, nada apreciar; aceita o amor e estuda-o. Uma instrui-nos, aconselha-nos, numa idade em que gostamos de ser guiados, em que a obediência é um prazer; a outra quer aprender tudo e mostra-se ingénua naquilo em que a primeira é terna. Aquela só permite um único triunfo; esta obriga a combates perpétuos. A primeira só tem lágrimas e prazeres, a segunda só voluptuosidades e remorsos. Uma, demasiado submissa, oferece a triste segurança da tranquilidade; a outra perde muito por não pedir ao amor as suas mil metamorfoses. Uma desonra-se sozinha, a outra mata uma família inteira por aquele a quem ama. Uma jovem só tem um atractivo a julga ter dito tudo quando se despe; mas a mulher tem-nos em grande número e oculta-os sob mil véus; em suma, afaga todas as vaidades, enquanto a noviça só lisonjeia uma. São excitantes, aliás, as indecisões, os pavores, o medo, as perturbações e as tempestades da mulher de trinta anos, que não se encontram nunca no amor duma rapariga (…). Finalmente, além de todas as vantagens da sua posição, a mulher de trinta anos pode tornar-se rapariga, representar todos os papéis, ser púdica e embelezar-se até com uma infelicidade. Entre ambas encontra-se a incomensurável diferença do previsto para o imprevisto, da força para a fraqueza. A mulher de trinta anos satisfaz a tudo; a jovem, sob pena de não o ser, não deve satisfazer a nada.”

Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos

domingo, 2 de setembro de 2012

Lisboa, 2 de Setembro



Oslo, 31 de Agosto. Não falta ali nada. Um homem de 34 anos perdido, ex-toxicodependente tenta regressar à vida. Recomeçar do zero é impossível, os outros e ele próprio não perdoam. Os outros que também estão no mesmo barco à deriva, e que não admitem que alguém esteja mais partido que eles. Todos fodidos, náufragos pouco solidários: importa manter a farsa e seguir andando. O homem é apenas a baixa mais evidente, a braços com um problema comum que excede a heroína. A droga nunca é o problema. É a solução. Existem outras: o trabalho, a televisão, o casamento, os filhos, blá-blá.
E qual é o problema do homem, afinal? O problema é ter nascido numa época descomplicada, obrigado ao sucesso e à felicidade. É ser demasiado inteligente, ver e dizer o que não pode ser visto nem dito. É ter desprezado a idiotia da felicidade para aprimorar um talento que não pode cumprir porque quando nos pomos a cismar mais do que os outros caímos no buraco e então, é o ver-se-te-avias para tornar a subir e regressar ao mundo dos vivos.
Falta ali tudo. Naquele olhar descrente de quem sonhou uma vida diferente, uma vida mais próxima do extraordinário, da beleza, e soçobra todos os dias perante a realidade chã, crua e pobre. As pessoas e as coisas opacas, incapazes de devolver qualquer sentido. “São coisas que nunca se mostram nos filmes: o sentimento de não saber porque é que estamos perdidos, apesar de termos vidas confortáveis ou de virmos de famílias privilegiadas.” “Nos meus filmes, tenho falado sempre da «dupla vergonha» de fracassar, ao não se conseguir fazer aquilo para que se tem talento no contexto de uma vida privilegiada num dos países mais ricos do mundo, e de não ter razões de queixa. Fracassar na Noruega é uma dupla vergonha: com o mundo como está tínhamos obrigação de ser felizes. Porque é que não somos?”
Impossível evitar a identificação narcísica automática. A caminho da praia, uma amiga confessa, de sorriso leve,  que ao ler sobre o filme pensou “epá isto é a minha vida”. Com a mesma leveza, retribuo graciosamente “a tua e a de todos nós. Fomos todos ludibriados. Quero o meu dinheiro de volta!”. Ironizamos depois sobre a sorte da nossa catástrofe quotidiana não se passar na Noruega e lá vamos nós a banhos, desprendidas como quem acredita ainda. Fazemos como o protagonista do filme: sorrimos da nossa desgraça e da dos outros e fazemos de conta que não se passa nada de extraordinário.
E de facto, nada de extraordinário se passa. Só esta tragédia banal, diária, onde se faz o que se pode para se persistir. Sem esperanças de luz nem rasgos de indignação – apenas a frustração de termos falhado quando tínhamos tudo a nosso favor. Todos os dias sacrificamos a grande vida, seja lá o que isso for, ao altar da puta da vidinha.
Faltava um frame final no filme: os rostos daqueles que estavam na sala na última sessão deste sábado. Entre eles, um velhote circunspecto de bengala. Lá ia um sobrevivente declarado.