Há algum tempo que não me deixava tocar por
um livro. Tenho andado arisca a literaturas, concentrada em usar as pernas para
andar. Tentando manter os pés no chão e a cabeça nas nuvens. Mas às vezes o sonho faz sentir a sua falta
nas mãos inquietas que fumam demasiado. Foi assim na manhã alegre de sábado em
que encontrei o livro Os Cães e os Lobos. Confortadas pela presença do livro,
as mãos abrandaram junto ao peito, trocando a compulsão do fumo pelas palavras
límpidas de Irène Némirovsky.
Não concordo com o texto da contracapa que
apresenta a obra como “um romance sobre a
infância e a inocência perdida, uma obra-prima indiscutível da literatura do
século XX”. A cada leitor o seu livro: para mim, é um romance sobre a
infância e a inocência obstinada.
O enredo acompanha a história solitária de
Ada, uma judia pobre que se apaixona por Harry, filho de um rico banqueiro
judeu. Através da narração deste amor insensato, conhecemos a diferença entre os
cães e os lobos. Os lobos desejam com toda a força das suas almas, cravam os
dentes nas presas da sua esperança e não largam. Conseguem privar-se dos bens
essenciais e decorativos mas não abdicam das suas alucinações interiores. Os cães
também sentem dentro de si esse desejo insaciável de felicidade mas sem os
lobos são incapazes de deixar a atmosfera doméstica onde confortavelmente
definham.
“Madame Mimi deu apressadamente meia-volta e
Ada foi atrás dela, cabisbaixa, com a sensação que toda a gente a olhava e se
ria à sua custa. Adoptou uma expressão tão singular, tão concentrada e dolorosa
que a francesa parou e advertiu-a:
- Ada, não se deve desejar com tanta força.
- Não consigo ser de outra maneira, Madame
Mimi.
- Tem de ser mais desprendida. Perante a
vida, a menina tem de ser generosa como um credor compreensivo e não como um
ávido usurário.
- Não consigo ser de outra maneira – repetiu Ada.”
Ocorrem-me mais uma vez os versos de Sylvia
Plath:
And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.
E sei que também eu não consigo ser de outra
forma. Há no meu sangue uma ingenuidade obstinada que não se deixa domar. "Pudica
e selvagem, de corpo e alma..."