domingo, 28 de abril de 2013

Da inocência obstinada



Há algum tempo que não me deixava tocar por um livro. Tenho andado arisca a literaturas, concentrada em usar as pernas para andar. Tentando manter os pés no chão e a cabeça nas nuvens. Mas às vezes o sonho faz sentir a sua falta nas mãos inquietas que fumam demasiado. Foi assim na manhã alegre de sábado em que encontrei o livro Os Cães e os Lobos. Confortadas pela presença do livro, as mãos abrandaram junto ao peito, trocando a compulsão do fumo pelas palavras límpidas de Irène Némirovsky.

Não concordo com o texto da contracapa que apresenta a obra como “um romance sobre a infância e a inocência perdida, uma obra-prima indiscutível da literatura do século XX”. A cada leitor o seu livro: para mim, é um romance sobre a infância e a inocência obstinada.

O enredo acompanha a história solitária de Ada, uma judia pobre que se apaixona por Harry, filho de um rico banqueiro judeu. Através da narração deste amor insensato, conhecemos a diferença entre os cães e os lobos. Os lobos desejam com toda a força das suas almas, cravam os dentes nas presas da sua esperança e não largam. Conseguem privar-se dos bens essenciais e decorativos mas não abdicam das suas alucinações interiores. Os cães também sentem dentro de si esse desejo insaciável de felicidade mas sem os lobos são incapazes de deixar a atmosfera doméstica onde confortavelmente definham.

“Madame Mimi deu apressadamente meia-volta e Ada foi atrás dela, cabisbaixa, com a sensação que toda a gente a olhava e se ria à sua custa. Adoptou uma expressão tão singular, tão concentrada e dolorosa que a francesa parou e advertiu-a:
- Ada, não se deve desejar com tanta força.
- Não consigo ser de outra maneira, Madame Mimi.
- Tem de ser mais desprendida. Perante a vida, a menina tem de ser generosa como um credor compreensivo e não como um ávido usurário.
- Não consigo ser de outra maneira – repetiu Ada.”

Ocorrem-me mais uma vez os versos de Sylvia Plath:

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

E sei que também eu não consigo ser de outra forma. Há no meu sangue uma ingenuidade obstinada que não se deixa domar. "Pudica e selvagem, de corpo e alma..."

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