Toda a gente sabe que mulheres que
lêem são perigosas. E que mulheres que lêem e escrevem são fatais. Historicamente,
as mulheres foram sempre mais vulneráveis à loucura pela identificação
romanesca. Sylvia Plath, encontrada morta na sua casa, a 11 de Fevereiro de
1963, com a cabeça dentro do forno e o gás ligado, tornou-se o ícone pop da femme fatale que lê e escreve. Bonita,
inteligente e perturbada, o seu nome foi usado para designar o célebre ‘efeito Plath’, uma suposta propensão das
poetisas para os distúrbios mentais. Devota das palavras certeiras, Sylvia consagrou
a sua vida ao “grande striptease”,
confundindo literatura e vida. Em Lady
Lazarus, escreveu sobre as suas tentativas de suicídio:
Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me
And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times
to die.
O que quase ninguém sabe ou diz é que
existem textos que matam. Textos que deixam as mãos, os olhos e os ouvidos
ensanguentados. Palavras que incitam à revolta, ganas de sair pelas ruas
gritando o que todos calam, que assim, meus senhores, não se pode viver. É
preciso inventar uma outra vida que não estes dias chãos, dias de cão roendo os
ossos e as vísceras. Inventar um amor novo, louco e forte, para derrotar o medo
que corrompe as falanges. A vida inteira revisitada e
não se encontra recordação que sirva de mastro, farol ou almofada. Tudo tão
violento para depois se morrer no fim. Textos assassinos cujas palavras,
dispostas numa determinada sequência, nos amarrotam o peito com uma mão negra e
tornam a morte certa e inevitável.
Suspeitei desde cedo que as palavras
não são tão inofensivas como a presente cultura da imagem pretende fazer
esquecer e que tudo pode ser textualmente produzido, desde o amor à morte. Ou:
sobretudo o amor e a morte. E foi nas palavras de Sylvia Plath no poema Three Women que encontrei a minha primeira
grande máquina de morte escrita, numa encenação teatral da qual saí lívida e
assustada.
When I first saw it, the
small red seep, I did not believe it.
I watched the men walk about me in the office. They were so flat!
There was something about them like cardboard, and now I had caught it,
That flat, flat, flatness from which ideas, destructions,
Bulldozers, guillotines, white chambers of shrieks proceed,
Endlessly proceed and the cold angels, the abstractions.
I sat at my desk in my stockings, my high heels,
And the man I work for laughed: 'Have you seen something awful?
You are so white, suddenly.' And I said nothing.
I saw death in the bare trees, a deprivation.
I watched the men walk about me in the office. They were so flat!
There was something about them like cardboard, and now I had caught it,
That flat, flat, flatness from which ideas, destructions,
Bulldozers, guillotines, white chambers of shrieks proceed,
Endlessly proceed and the cold angels, the abstractions.
I sat at my desk in my stockings, my high heels,
And the man I work for laughed: 'Have you seen something awful?
You are so white, suddenly.' And I said nothing.
I saw death in the bare trees, a deprivation.
Assustada de morte. De repente, era
tarde demais. Tarde demais para desejar, tarde demais para descansar. O
mistério da vida revelava-se sob a forma de uma pergunta atroz, impedindo
qualquer respostas que não fosse violenta. Exposto aos sons destas letras, o
corpo perdia a sua capacidade de ser casa e quietude. Expulso da vida, estava
entregue à noite e ao silêncio.
Mas nem todos os textos
matam de um só golpe. Existem outros que se instalam nos escaninhos da alma e
lentamente a corroem até à derrocada. No entanto, esta morte textual não está
destinada a todos e é imprevisível. Depende da sequência das leituras e só
acontece a quem aceita tomar o tempo e o pensamento com a mesma compulsão voraz
de quem toma uma droga. Os dias sucedem graves e mesmerizados como estátuas de
gelo, cada minuto sacrificado no altar do demónio internalizado. É assim que se
caminha e cai ao mesmo tempo, e da alegria mais fértil nasce o desespero mais
daninho.
Sobrevém depois o grande
abalo. O chão treme como um dia a cabeça desejou e os pés já não dançam como
antes. Dentro do corpo tudo se escoa e converte em detrito e fica-se a sós com
um grande medo que não autoriza esquecimento ou sono. É-se tomado por uma
tristeza que não nos pertence, um bicho arcaico vindo de tempos remotos para se
alojar num organismo estranho e parasitar as suas entranhas.
Mas nem sempre se acaba
com a cabeça dentro do forno. Às vezes, um texto assassino é o golpe de
misericórdia necessário para uma mulher se parir a si mesma. E é possível
regressar das mortes múltiplas sibilando baixinho: a literatura é sobretudo
exercício de queda e voo. Nela dificilmente encontrarás amparo ou abrigo,
coração excessivo. É preciso que continues caindo para a frente e descubras
como pode uma morte convalescer. Felizmente, existe também a música.
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