Comecemos por dois mistérios. O
lançamento do último livro de Knut Hamsun editado pela Cavalo de Ferro não
figurava nos destaques da reentré literária dos principais suplementos
culturais do país. Apanhou-me, portanto desprevenida quando fui à livraria
buscar as novidades que planeara ler. A sua capa negra com uma imagem de Munch tinha os olhos postos em
mim e não me restava senão devolver o olhar. São assim as peripécias de uma
leitora fútil que tende a julgar os livros pela capa.
A chamada misteriosa continuou
em casa. O livro estava impertinente por sair da estante para o meu regaço,
tendo-me obrigado a adiar outras leituras urgentes. E assim começaram as minhas
noites diabólicas com os Mistérios de
Knut Hamsun. Não vou explicar o uso deste adjectivo, mas garanto que é o mais
próximo desta experiência nocturna de leitura. Terminada a leitura diária, o
livro continuava a comunicar comigo, oferecendo-me sonhos perturbados e
nervosos. Sonhos que podiam ser tidos como pesadelos, não fosse a sua natureza
branca. Só depois de terminar a leitura do livro, li as habituais citações da
contracapa. “Mistérios é tão próximo e
tão inquietante quando o nosso sonho (ou pesadelo) da noite passada” (New
York Times). Que me lembre, nunca tal comunicação inconsciente me tinha
acontecido com um livro. Uma proximidade inquietante.
Knut Hamsun é tido por muitos, sobretudo
grandes escritores, como um dos maiores. A julgar pela capacidade de me
perturbar, parece-me um título merecido. De Mistérios,
disse Henry Miller: “está mais próximo de
mim do que qualquer outro livro que eu tenha lido”. Talvez Miller tenha
sentido a mesma empatia disruptiva que eu senti por Johan Nilsen Nagel, o
misterioso estrangeiro que sem nenhuma razão aparente se instala por um período
breve numa pequena cidade costeira da Noruega.
Nagel é um homem em luta, uma
alma que não alinha com nada, desconfiando de tudo e todos, sobretudo dos «bons
sentimentos» e dos grandes homens. «A
vida é uma luta contra os monstros que se escondem nos recantos do coração e do
cérebro». Nagel não é, como Hamsun disse da personagem, um homem-tipo.
Aliás, o que o exaspera é o congelamento dos homens em subjectividades típicas.
Nagel ri quando devia chorar, é honesto quando deve ser desonesto e vice-versa.
É um homem em desacordo e com os nervos em franja, como qualquer moderno que se
preze, movido pelo desejo de fazer algo diferente, algo que estilhace a
superfície polida da vida embalsamada nos valores confortáveis da burguesia.
A curta estadia do estranho vai
pertubar a paz podre da comunidade. Nagel, com uma enigmática capacidade
intuitiva, funcionará como um espelho negro onde os habitantes da cidade podem
ler o reflexo dos seus instintos e desejos reprimidos. Quanto ao elemento
estranho, esse está condenado à autodestruição. A sua mania de contrariar
desemboca na melancólica constatação de que tudo é hipocrisia e ele não é
melhor que ninguém. É o preço a pagar por um «bom» coração e uma cabeça
volátival, errante.
Sou, como Nagel, uma alma
atormentada. Não me acho melhor que os outros mas a maioria exaspera-me com as
suas mentiras e hipocrisias. Sou incapaz de reconhecer uma autoridade e não
consigo não desafiar. Desde pequena, se alguém me diz que não posso fazer ou
dizer algo, trato imediatamente de o fazer ou dizer. Tenho uma personalidade
leal mas não houve um amor que eu não traísse. Sinto um profundo desacordo com
a vida e a forma como se vive. Embora pessimista, tenho sempre viva a esperança
que a vida rompa a sua imobilidade e aflore sobre o gelo da indiferença,
exultante.
Tudo isto que foi dito fica
aquém do livro de Knut Hamsun. Acontece-me sempre com os livros maiores,
aparentados e diabolicamente bem escritos: falta-me o génio para falar do
génio.
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