Há pouco descia a rua do Alecrim e pensei que o que decide a singularidade de uma pessoa não é tanto a sua história como a conjunção desta com a história das suas leituras. Não existem dois leitores iguais na história do mundo. Ninguém leu ou lerá os mesmos livros que eu pela mesma sequência afectiva. Uma história que se constrói como o mais perfeito dos labirintos, composta por misteriosas empatias e tristes desencontros com os livros certos que não nos acertam no tempo certo.
O ano começou com Niels Lyhne, mudanças de casa e desemprego.
Janeiro, mês das saudades contentes.
6 de Janeiro: São quase
seis da manhã e estou na minha nova casa. Estou muito cansada com as mudanças,
nos últimos dias não tive praticamente tempo para pensar na minha felicidade.
Mas vim para a cama ler o Niels Lyhne e não pude deixar de
vir escrever um pouco. Este vai ser um ano importante, um ano que prometi
dedicar mais erotismo e leituras a uma exegese espiritual e ética (presente de
natal da Etty Hillesum).
13 de Janeiro: Tive
saudades dele. Masturbei-me mas já não o consigo recordar. Chorei depois, como
é habitual. Não um choro de mágoa nem de desespero. Foi mais um chorar que
reconhece a falta mas de uma forma contente, como quem aceita (…) O amor deixou
de ser uma fome. Sinto-me segura e completa numa falta que não é mais abstracta
mas nomeada e calma. A única tristeza advém da suspeita que vivo sozinha este
amor (…) Viver a saudade com carinho é o que há a fazer por ora.
16 de Janeiro: A vida está
caótica. Estou desempregada, a tese de doutoramento atrasada. A crise é afinal
real, não apenas uma patranha dos media. Não há emprego em lado nenhum.
17 de Janeiro: Hoje
almocei na faculdade e encontrei um colega de mestrado. Retive o momento em que
ele me disse que eu estava muito melhor, mais bonita e mais meiga. “Já não
pareces uma tipa fria”. Achei piada a esta ideia de que o tempo amargura certas
pessoas enquanto aquece outras. Talvez cada experiência nos seja dada como uma
peça de um puzzle para que possamos ir enfim completando e possuindo o nosso
desejo.
Em Fevereiro, depois de muitas peripécias, consigo um trabalho.
O primeiro do ano: servir pequenos-almoços num hotel. É bom entrar no eléctrico
de madrugada e apreciar de modo muito simples Lisboa a despertar. A banda
sonora do Django ajuda-me a ter forças.
Fevereiro, mês de liberdade e muito carnaval.
20 de Fevereiro: Estou
bem. Consigo ver novamente a beleza.
A beleza e a fé estão
aí, disponíveis para quem pede para ver, como São Tomé. Acredito que o meu
milagre virá e espero sem desesperar, porque mesmo quando algo menos bom
acontece, sempre se lhe segue algo de bom, como um relâmpago cósmico enviado
como lembrete contra a queda. Estou a recuperar a confiança em mim e nos
outros. De forma tímida. As feridas ainda sulcam o pensamento mas a dor esvaneceu-se.
São assim as cicatrizes de uma mulher que caminha ao encontro de si.E a escrita
regressa também. Estou bem e rio. Sou mulher e consegui sobreviver até à vida.
Em Março, consigo outro emprego, desta vez em produção
televisiva. Ao serviço do diabo: marketing. Março, mês de desenamoramentos.
23 de Março: Hoje, ao
acordar, recordei o rosto dele e, por momentos, o amor ausentou-se. Chegou a
hora de fazer do passado matéria e não pensamento. Embora às vezes me faltem
uns braços para onde fugir, os teus nunca foram abrigo para mim.
Abril é um mês difícil. Muita chuva e viadutos mil. Descubro
Irène Némirovski e tento ter calma.
19 de Abril: Não tenho
tido muito tempo para ler. Não me sinto útil no meu trabalho (…). O mistério de
quem aprende a andar de novo. Tenho medo de cair. Tento não pensar muito e usar
as pernas. E todos os dias há aquele viaduto que tenho de atravessar a tremer.
Salva-me o Tejo numa das linhas de comboio mais bonitas do mundo.
Maio. A feira do livro acalma a agitação e sou feliz no
Parque Eduardo VII. Encontro três amores passados: um oferece-me uma fartura, o
outro um livro e o terceiro, o maior, não sabe já sorrir-me. Song for Zula.
27 de Maio: As mãos das
pessoas a mexer nos livros são mãos esfomeadas.
29 de Maio: O segredo
dos casais felizes: eles oferecem livros a elas.
Junho. A feira do livro termina e já não corro. Mas não sou
feliz. Leio É Assim que a Perdes e O Jogo Sério e não encontro em mim
qualquer esperança, apenas um silêncio resignado e competente.
22 de Junho: Não me
sinto ligada a nada. Não entendo nada. Não sei nada. Vim até aqui e li tanto
para ficar nua.
Em Julho, leio muito, muito. De forma estéril: as letras não
me arrebatam.
10 de Julho: A morte ou
a paz?
Em Agosto e Setembro, há o Meco, bons amigos e muitos russos (uma receita
infalível para os corações mais grelados) e a boa nova: vou finalmente
trabalhar com livros.
Outubro, Novembro e Dezembro são meses que me pertencem por
inteiro. Mistérios de Knut Hamsun.
O ano termina com a leitura da consciência de Zeno. “A vida assemelha-se um pouco a uma
enfermidade: também procede por crises e por depressões. A diferença entre as
outras doenças é que a vida é sempre mortal. Tratar da vida seria pretender
tapar os orifícios do nosso organismo, considerando-os como feridas.
(…)
A saúde, para o homem,
constitui um bem quimérico. Só pode pertencer ao irracional, que não conhece
senão um progresso: o do seu próprio organismo. Quando a andorinha compreendeu
que a única possibilidade de viver residia na migração, reforçou-se o músculo
motor das suas asas, tornando-se-lhe a parte mais considerável do seu corpo. A toupeira
enterrou-se e todo o seu ser se adaptou às necessidades de uma vida
subterrânea. O cavalo fez-se maior, transformou a base. De certos animais
ignoramos as metamorfoses, mas existiram, e nunca lhes prejudicaram a saúde.”
E o começo da escalada
à Montanha Mágica. Uma odisseia
literária como convém a um inverno rigoroso. Para o novo ano levo apenas este livro
e um desejo: florir. Entretanto, vou à Holanda aprender como se faz.
Feliz Natal e um 2014
com novidades!
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