segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Diário de 2013


Há pouco descia a rua do Alecrim e pensei que o que decide a singularidade de uma pessoa não é tanto a sua história como a conjunção desta com a história das suas leituras. Não existem dois leitores iguais na história do mundo. Ninguém leu ou lerá os mesmos livros que eu pela mesma sequência afectiva. Uma história que se constrói como o mais perfeito dos labirintos, composta por misteriosas empatias e tristes desencontros com os livros certos que não nos acertam no tempo certo.

O ano começou com Niels Lyhne, mudanças de casa e desemprego. Janeiro, mês das saudades contentes.

6 de Janeiro: São quase seis da manhã e estou na minha nova casa. Estou muito cansada com as mudanças, nos últimos dias não tive praticamente tempo para pensar na minha felicidade. Mas vim para a cama ler o Niels Lyhne e não pude deixar de vir escrever um pouco. Este vai ser um ano importante, um ano que prometi dedicar mais erotismo e leituras a uma exegese espiritual e ética (presente de natal da Etty Hillesum).

13 de Janeiro: Tive saudades dele. Masturbei-me mas já não o consigo recordar. Chorei depois, como é habitual. Não um choro de mágoa nem de desespero. Foi mais um chorar que reconhece a falta mas de uma forma contente, como quem aceita (…) O amor deixou de ser uma fome. Sinto-me segura e completa numa falta que não é mais abstracta mas nomeada e calma. A única tristeza advém da suspeita que vivo sozinha este amor (…) Viver a saudade com carinho é o que há a fazer por ora.

16 de Janeiro: A vida está caótica. Estou desempregada, a tese de doutoramento atrasada. A crise é afinal real, não apenas uma patranha dos media. Não há emprego em lado nenhum.

17 de Janeiro: Hoje almocei na faculdade e encontrei um colega de mestrado. Retive o momento em que ele me disse que eu estava muito melhor, mais bonita e mais meiga. “Já não pareces uma tipa fria”. Achei piada a esta ideia de que o tempo amargura certas pessoas enquanto aquece outras. Talvez cada experiência nos seja dada como uma peça de um puzzle para que possamos ir enfim completando e possuindo o nosso desejo.

Em Fevereiro, depois de muitas peripécias, consigo um trabalho. O primeiro do ano: servir pequenos-almoços num hotel. É bom entrar no eléctrico de madrugada e apreciar de modo muito simples Lisboa a despertar. A banda sonora do Django ajuda-me a ter forças.

Fevereiro, mês de liberdade e muito carnaval.

20 de Fevereiro: Estou bem. Consigo ver novamente a beleza.
A beleza e a fé estão aí, disponíveis para quem pede para ver, como São Tomé. Acredito que o meu milagre virá e espero sem desesperar, porque mesmo quando algo menos bom acontece, sempre se lhe segue algo de bom, como um relâmpago cósmico enviado como lembrete contra a queda. Estou a recuperar a confiança em mim e nos outros. De forma tímida. As feridas ainda sulcam o pensamento mas a dor esvaneceu-se. São assim as cicatrizes de uma mulher que caminha ao encontro de si.E a escrita regressa também. Estou bem e rio. Sou mulher e consegui sobreviver até à vida.

Em Março, consigo outro emprego, desta vez em produção televisiva. Ao serviço do diabo: marketing. Março, mês de desenamoramentos.

23 de Março: Hoje, ao acordar, recordei o rosto dele e, por momentos, o amor ausentou-se. Chegou a hora de fazer do passado matéria e não pensamento. Embora às vezes me faltem uns braços para onde fugir, os teus nunca foram abrigo para mim.

Abril é um mês difícil. Muita chuva e viadutos mil. Descubro Irène Némirovski e tento ter calma.

19 de Abril: Não tenho tido muito tempo para ler. Não me sinto útil no meu trabalho (…). O mistério de quem aprende a andar de novo. Tenho medo de cair. Tento não pensar muito e usar as pernas. E todos os dias há aquele viaduto que tenho de atravessar a tremer. Salva-me o Tejo numa das linhas de comboio mais bonitas do mundo.

Maio. A feira do livro acalma a agitação e sou feliz no Parque Eduardo VII. Encontro três amores passados: um oferece-me uma fartura, o outro um livro e o terceiro, o maior, não sabe já sorrir-me. Song for Zula.
27 de Maio: As mãos das pessoas a mexer nos livros são mãos esfomeadas.
29 de Maio: O segredo dos casais felizes: eles oferecem livros a elas.

Junho. A feira do livro termina e já não corro. Mas não sou feliz. Leio É Assim que a Perdes e O Jogo Sério e não encontro em mim qualquer esperança, apenas um silêncio resignado e competente.

22 de Junho: Não me sinto ligada a nada. Não entendo nada. Não sei nada. Vim até aqui e li tanto para ficar nua.

Em Julho, leio muito, muito. De forma estéril: as letras não me arrebatam.

10 de Julho: A morte ou a paz?

Em Agosto e Setembro, há o Meco, bons amigos e muitos russos (uma receita infalível para os corações mais grelados) e a boa nova: vou finalmente trabalhar com livros.

Outubro, Novembro e Dezembro são meses que me pertencem por inteiro. Mistérios de Knut Hamsun.

O ano termina com a leitura da consciência de Zeno. “A vida assemelha-se um pouco a uma enfermidade: também procede por crises e por depressões. A diferença entre as outras doenças é que a vida é sempre mortal. Tratar da vida seria pretender tapar os orifícios do nosso organismo, considerando-os como feridas.
(…)
A saúde, para o homem, constitui um bem quimérico. Só pode pertencer ao irracional, que não conhece senão um progresso: o do seu próprio organismo. Quando a andorinha compreendeu que a única possibilidade de viver residia na migração, reforçou-se o músculo motor das suas asas, tornando-se-lhe a parte mais considerável do seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu ser se adaptou às necessidades de uma vida subterrânea. O cavalo fez-se maior, transformou a base. De certos animais ignoramos as metamorfoses, mas existiram, e nunca lhes prejudicaram a saúde.”

E o começo da escalada à Montanha Mágica. Uma odisseia literária como convém a um inverno rigoroso. Para o novo ano levo apenas este livro e um desejo: florir. Entretanto, vou à Holanda aprender como se faz.


Feliz Natal e um 2014 com novidades!

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