domingo, 15 de novembro de 2020
os quarenta e nove degraus
É um daqueles livros tão
preciosos que tudo o que se disser para o descrever fica aquém. Roberto Calasso
é, juntamente, com Giorgio Agamben e Pietro Citati (todos eles italianos, por um
qualquer acaso ou não) um dos literatos vivos (na verdadeira acepção da palavra
e não na sua versão hipster,
infelizmente tão disseminada mediaticamente) cuja erudição mais admiro.
49 DEGRAUS reúne vários
ensaios de Calasso e a edição portuguesa da Cotovia reúne apenas 11 dos 37
ensaios da publicação original, ou seja, uma pequena amostra, ainda assim
deliciosa. Estes ensaios versam sobre vários tópicos, desde Roberto Bazlen,
Adorno, Karl Krauss, Musil, Homero, Flaubert, Simone Weil, Stendhal, Brecht,
Freud, Céline e, claro está, Walter Benjamin. Aliás, o ensaio homónimo é dedicado
a esse autor e à teoria talmúdica dos 49 degraus de significado de cada
passagem da Torá. E creio que, referindo-se a Benjamin, Calasso nos fala dele e
do caminho autêntico do literato: «renunciar,
com hipócrita modéstia, ao texto sagrado, mas ao mesmo tempo tratar qualquer
outro texto que seja objecto de comentário com a mesma devoção e meticulosidade
que o texto sagrado tradicionalmente exige.» A prosa elegante e a
desenvoltura hermenêutica com que Calasso versa sobre vários autores e topos da cultura provam-no: um literato
deverá antes de mais ser um exegeta, ou não será.
O meu exemplar custou-me 2
euros na Feira do Livro de Lisboa de 2009 e, raios me partam, se não foi uma
pechincha!
domingo, 8 de novembro de 2020
heureux comme une femme
SENSAÇÃO
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
SENSATION
Par les soirs bleus d'été, j'irai dans les sentiers,
Picotés par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l'amour infini me montera dans l'âme,
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, – heureux comme avec une femme.
Arthur Rimbaud
Melancolia de Chopin
¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad; quería amor, sí, amor, y viajes y locuras, y amor, amor…
—Pero Brígida ¿por qué te vas? ¿por qué te quedabas? —había preguntado Luis.
Ahora habría sabido contestarle:
—¡El árbol, Luis, el árbol! Han derribado el gomero.
María Luisa Bombal, El árbol (1939)
«Longa é a noite, señor. Longa, sombria e fria.»
Venho aqui chamar a vossa atenção para
um livro precioso publicado em Dezembro de 2014 e que parece ter passado
despercebido: O VISITANTE DA NOITE & OUTROS CONTOS, de B. Traven.
«Disse-se de B. Traven que seria Jack
London, Ambrose Bierce ou Arthur Cravan. Somente em 1969, quando as suas cinzas
repousaram num rio em Chiapas, foi identificado como Ret Marut, uma
revolucionário alemão que se fixara no México em 1924. Autor d’O Barco dos Mortos (1926) e d’O Tesouro da Sierra Madre (1927) –
adaptado ao cinema por John Huston –, pertence a uma linhagem de aventureiros e
contistas natos, cuja geografia de vida é tão insondável como as paragens que
elegem. Traven publicou folhetins em jornais alemães e, depois de ter tecido
críticas virulentas ao militarismo germânico, entrou na clandestinidade em
1919. Reemergiu em Londres, em 1923, e, na iminência de ser deportado para a
Alemanha e fuzilado, embarcou para o México. Neste país, ao panfletário Ret
Marut, sucederia, em definitivo, o escritor B. Traven, ao lado dos oprimidos,
apontando a via da esperança e da libertação e arquitectando o seu anonimato
tão ciosamente como os seus livros.»
Para além de uma breve nota sobre o
autor, esta edição apresenta uma selecção de 11 contos de B. Traven. São todos
muito bons, imbuídos do imaginário e folclore desse México simultaneamente
festivo e sombrio, dócil e violento, que para além de um país se constitui
também como um território vital da alma. Gostei particularmente do conto que
intitula a antologia – O VISTANTE DA NOITE – bem como de «Chamada Nocturna»,
«Macario», «Amizade» e «A História de Uma Bomba» e, acima de todos, «Linha de
Montagem», o melhor conto alguma vez escrito sobre o capitalismo e a sua
potência destruidora do anímico.
Ide ler, amigos, é um livro do caralho!
sábado, 31 de outubro de 2020
A un poeta
Nada más triste que un titán que llora,
Hombre-montaña encadenado a un lirio,
Que gime fuerte, que pujante implora:
Víctima propia en su fatal martirio.
Hércules loco que a los pies de Onfalia
La clava deja y el luchar rehúsa,
Héroe que calza femenil sandalia,
Vate que olvida a la vibrante musa.
¡Quién desquijara los robustos leones,
Hilando esclavo con la débil rueca;
Sin labor, sin empuje, sin acciones;
¡Puños de fierro y áspera muñeca!
No es tal poeta para hollar alfombras
Por donde triunfan femeniles danzas:
Que vibre rayos para herir las sombras,
Que escriba versos que parezcan lanzas.
Relampagueando la soberbia estrofa,
Su surco deje de esplendente lumbre,
Y el pantano de escándalo y de mofa
Que no lo vea el águila en su cumbre.
Bravo soldado con su casco de oro
Lance el dardo que quema y que desgarra,
Que embiste rudo como embiste el toro,
Que clave firme, como el león, la garra.
Cante valiente y al cantar trabaje;
Que ofrezca robles si se juzga monte;
Que su idea, en el mal rompa y desgaje
Como en la selva virgen el bisonte.
Que lo que diga la inspirada boca
Suene en el pueblo con palabra extraña;
Ruido de oleaje al azotar la roca,
Voz de caverna y soplo de montaña.
Deje Sansón de Dalila el regazo:
Dalila engaña y corta los cabellos.
No pierda el fuerte el rayo de su brazo
Por ser esclavo de unos ojos bellos.
Rúben Darío
O livro de Thóth
HERMANDAD
Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.
Octavio Paz
And this I dreamt, and this I dream
And this I dreamt, and this I dream,
And some time this I will dream again,
And all will be repeated, all be re-embodied,
You will dream everything I have seen in dream.
To one side from ourselves, to one side from the world
Wave follows wave to break on the shore,
On each wave is a star, a person, a bird,
Dreams, reality, death - on wave after wave.
No need for a date: I was, I am, and I will be,
Life is a wonder of wonders, and to wonder
I dedicate myself, on my knees, like an orphan,
Alone - among mirrors - fenced in by reflections:
Cities and seas, iridescent, intensified.
A mother in tears takes a child on her lap.
sábado, 24 de outubro de 2020
I will wade out
i will wade out
till my thighs are steeped in burning flowers
I will take the sun in my mouth
and leap into the ripe air
Alive
with closed eyes
to dash against darkness
in the sleeping curves of my body
Shall enter fingers of smooth mastery
with chasteness of sea-girls
Will i complete the mystery
of my flesh
I will rise
After a thousand years
lipping
flowers
And set my teeth in the silver of the moon
-----//------
vou vau afora
até encharcar as coxas em flores de fogo
vou sentir o sol na minha boca
e saltar no ar maduro
Vivo
com olhos oclusos
pra chocar contra o escuro
nas sonolentas curvas do meu corpo
Entrarão dedos de maestria macia
com castidade de sereias
Vou eu completar o mistério
da minha carne
Vou despontar
Depois uns mil anos
beiçando
flores
E pregar meus dentes na prata da lua
E.E. Cummings
As casas, esses seres montruosos
"No sólo he imaginado eso juegos, también he meditado sobre la casa. Todas las partes de la casa están muchas veces, cualquier lugar es otro lugar. No hay un aljibe, un patio, un abrevadero, un pesebre; son catorce [son infinitos] los pesebres, abrevaderos, patios, aljibes, la casa es del tamaño del mundo; mejor dicho, es el mundo. Sin embargo, a fuerza de fatigar patios con un aljibe y polvorientas galerías de piedra gris, he alcanzado la calle y he visto el templo de las Hachas y el mar. Eso no lo entendí hasta que una visión de la noche me reveló que también son catorce [son infinitos] los mares y los templos. Todo está muchas veces, catorce veces, pero dos cosas hay en el mundo que parecen estar una sola vez: arriba, el intrincado sol; abajo, Asterión. Quizá yo he creado las estrellas y el sol y la enorme casa, pero ya no me acuerdo."
Jorge Luis Borges, La casa de Asterión
As casas, sempre as casas…
As casas são seres obsessivos,
feitas de pedra teimosa cuja orgulhosa memória nenhum arquitecto consegue
redimir.
Naqueles tempos estranhos e
difíceis, as casas estavam mais vivas que os seus habitantes. Tornaram-se excessivas.
Desvinculadas da economia humana, ramificavam-se, cresciam desordenadamente e
ninguém beneficiava da amplitude das suas florescências labirínticas. Ninguém,
a não ser os fantasmas e as bibliotecas. Uma pessoa podia ir dormir e acordar
junto à abóbada celeste, apartada do resto da comunidade humana que se
disseminava pelas casas festejando o facto destas terem finalmente tomado para
si o papel principal nos seus destinos. Lá em cima, no tecto do mundo,
infelizmente não restava mais caminho para o humano: incapaz de erguer a
cabeça, este era obrigado a retroceder, a perder a verticalidade a tão duras
expensas conquistada. A pedra animada vergava finalmente a vã ambição de um
animal que se sonhara intensamente a si próprio e que agora soçobrava pela
ironia do cimento.
Não obstante o amor continuava e
as escadas eram reservadas para os amantes. Sempre que alguém se apaixonava, as
casas pariam escadas e a geometria dos seus novelos despropositados era em si o
próprio Amor. Os amantes passavam as horas – já não havia dia nem noite, o ar
tornara-se líquido – vagabundando acima e abaixo, com os olhos virados para
dentro. Uns subiam sem dificuldade, outros desciam sem medo. Moviam-se como
autómatos, pálidos, brancos como a cal das casas, e etéreos. E esse vaivém
constante e silencioso fazia com que o sangue tornasse a circular no interior
das veias dos mortos.
A criança olhava a desordem das
casas e permitia-se enlouquecer. Entendia o último dos interditos – as casas
são eróticas, não há nada mais erótico do que uma casa – e não podia senão
enlouquecer. Depois aparecia alguém vindo de um passado distante, talvez do
tempo das perseguições dos romanos, e este começava a sorver os cabelos da
criança. Esta olhava-o, com os seus cabelos na boca, transbordando como um mar
de estrelas, e sentia um nojo profundo. Queixava-se à sua mãe. Porque as
crianças se queixam sempre às suas mães, mesmo quando já não são crianças ou
não têm mãe.
As casas, essas, continuavam a
expandir-se, megalómanas no desenho de si mesmas e indiferentes a todo o
sofrimento que lhes fosse externo.
O horror e a graça de andarmos todos ligados
Este foi um dos livros que
mais prazer me trouxe em 2018. AS ROTAS DA SEDA conta-nos como, através das
rotas comerciais da seda, que ligavam o Ocidente ao Oriente, se trocaram também
línguas, ideias, doenças, as religiões do mundo – ou seja, como a infecção desse
grande movimento de globalização é mais remota do que se pode pensar. Através
da enorme erudição de Peter Frankopan e da sua visão alternativa da história,
recebemos várias lições de humildade: a primeira, será a de que essa velha
Europa, só nos últimos séculos se tornou um agente representativo da mesma
história, tendo o seu papel sido nulo durante tempos mais remotos; e a maior de
todas, será perceber que os conceitos com que ainda hoje laboramos – tais como
os de nação, povo, raça – são extremamente artificiais. Entre muitos detalhes –
como, por exemplo, descobrimos que a palavra «escravo» se relaciona na sua
origem com a palavra «eslavo», pois o «império árabe» (chamemo-lo assim, para
abreviar) preferia escravos louros dessa região; ou saber que chamamos «russos»
aos povos que vivem na Rússia, por estes serem ruivos vikings que extinguiram
os povos indígenas dessa zona geográfica – chegamos à conclusão que o que
constitui toda a civilização humana é a violência perpétua de uns contra outros.
A ser assim, complexifica-se e muito a questão da indemnização histórica –
sendo cada «nação» formada a partir de múltiplos sacrifícios e extermínios, não
existe pureza de raça nem uma genealogia pura que permita isolar os vencidos
dos vencedores – pois todos os que restam são vencedores e como tal culpados ao
mais alto grau.
Em suma, é um livro de
história – uma história mais longa do que essa versão amputada que a modernidade
capitalista tratou de reescrever – mas lê-se como uma poema épico sobre a
humanidade e a sua violência inerente e estrutural, que atravessa todos os povos,
raças e credos, de forma muitas vezes aleatória.
domingo, 27 de setembro de 2020
Poppies in July
Do you do no harm?
You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns.
And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.
A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!
There are fumes that I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?
If I could bleed, or sleep!
If my mouth could marry a hurt like that!
Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.
But colorless. Colorless.
Sylia Plath
Mulheres, Corpo e Acumulação Original
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
a melhor definição de artista
Um segredo de escultor
«Uma história contemporânea, provavelmente francesa, mostra um escultor que manda vir um grande bloco de pedra e deita mãos ao trabalho.
Uns meses mais tarde termina a escultura de um cavalo.
Uma criança que esteve a vê-lo trabalhar pergunta-lhe então:
– Como sabias tu que havia um cavalo dentro da pedra?
sábado, 9 de maio de 2020
Layla, a Nocturna
quarta-feira, 6 de maio de 2020
The Love Song of J. Alfred Prufrock
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma percioche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo.