domingo, 15 de janeiro de 2023

em Creta, com o Minotauro




EM CRETA, COM O MINOTAURO


I


Nascido em Portugal, de pais portugueses,

e pai de brasileiros no Brasil,

serei talvez norte-americano quando lá estiver.

Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,

se usam e se deitam fora, com todo o respeito

necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria

de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações

nasci. E a do que faço e de que vivo é esta

raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo

quando não acredito em outro, e só outro quereria que

este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,

espero envelhecer

tomando café em Creta

com o Minotauro,

sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.

Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.

É metade boi e metade homem, como todos os homens.

Violava e devorava virgens, como todas as bestas.

Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,

que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".

Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]

Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,

riu-lhe no focinho respeitável.

O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto

o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,

cheias de ninfas e de efebos desempregados,

se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,

como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo

de investigar as origens da vida.


III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado

a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia

aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,

como toda a gente, não sabe português.

Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.

Conversaremos em volapuque, já

que nenhum de nós o sabe. O Minotauro

não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,

de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,

cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos

os escravos de outros. Ao café,

diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta

de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]

de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,

teremos nenhuma pátria. Apenas o café,

aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,

da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café

contudo e que eu, com filial ternura,

verei escorrer-lhe do queixo de boi

até aos joelhos de homem que não sabe

de quem herdou, se do pai, se da mãe,

os cornos retorcidos que lhe ornam a

nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,

à Palestina, e outros lugares turísticos,

imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,

sem versos e sem vida,

sem pátrias e sem espírito,

sem nada, nem ninguém,

que não o dedo sujo,

hei-de tomar em paz o meu café.


Jorge de Sena

Sem comentários: