sábado, 7 de janeiro de 2023

fazer da névoa-nada aconchego


O ano começa comigo novamente solteira, com um renovado gosto pela leitura e a descoberta de que nutro um genuíno interesse apaixonado por questões teológicas. Passeio feliz pela cabala, acompanhada por Qohélet, anjos e os incríveis gnósticos. Lendo aqui e ali, sem mais método ou propósito do que a inflamada paixão.

Aproveitando a coincidência, inscrevi-me num curso de iniciação à língua hebraica. Depois da aventura russa, assumo a liberdade da diletância, postura existencial que sempre me causou arrepios, talvez porque a minha natureza obsessivo-compulsiva quase sempre se sobrepôs. E penso que embora trabalhando no mundo da minha adoração - o dos livros, claro está - aquilo que mais me faz feliz é ser uma leitora entusiasmada. Poderia no passado não ter abandonado o mundo académico e hoje dedicar-me-ia a investigar profundamente todos estes temas que me arrebatam. Mas aí entraria novamente o perfeccionismo, o rigor, e a paixão seria rentabilizada e logo anulada. Melhor ser livre e viajar ligeira por tudo o que nos cativa, sem ficar cativa.

E é sábado e chove e estou aconchegada comigo, com os meus livros e minha gata. Será um cliché mas não deixa de ser delicioso. Ofereço-me batatas fritas caseiras e penso que Borges is my kind of guy:

«Durante os primeiros séculos da nossa era, os gnósticos disputaram com os cristãos. Foram aniquilados, mas podemos imaginar a sua vitória possível. Se tivesse triunfado Alexandria e não Roma, as estrambóticas e turvas histórias que resumi seriam coerentes, majestosas e quotidianas. [...] De qualquer modo, que melhor dom do que sermos insignificantes podemos esperar, e que maior glória haverá para um Deus do que a de ser absolvido do mundo?» 

Jorge Luis Borges in Uma reabilitação do falso Basilides

Sem comentários: