domingo, 7 de julho de 2024
domingo, 21 de janeiro de 2024
Aballay
«Esta noche, Aballay, ha decidido despergarse
de la tierra.
Bien es real que el llano, que es lo único que
él conoce, no tiene columnas, ni nunca há visto más que las de un pórtico, en
la iglesia de San Luis de los Venados.
Recuerda que para escabullirse de las
discipinas de su madre, se trepaba a un árbol. Acepta que al presente está
intentando lo mismo: huirse de su culpa, y busca adónde subir.
No le valdría, actualmente. Ni un ombú, si
probara el refugio de su altura y follaje. Sería descubierto, sería apedreado,
aunque no supieran la verdadera causa, solamente por portarse de una manera
extraña. Tampoco nadie le alcanzaría un mendrugo.
Está firme, a conciencia, en el trato consigo
mismo de separarse del suelo y llevar su vida en penitencia. […]
El fraile, dijo que montaban a la columna. Él,
Aballay, es hombre de a caballo. Tempranito, a los primeros colores del día,
Aballay monta en su alazán.
Le palmea con cariño el cuello y consulta: "¿Me aguantarás?" Supone que su compañero acepta y, mientras avanzan al trote suave, lo prepara: "Mirá que no es por un día... Es por siempre."»
domingo, 14 de janeiro de 2024
Israel e o Islão
«Abu Jafar Muhammad at-Tabari nasceu por volta de 839 na Pérsia setentrional e a sua obra de historiador e de teólogo seria esquecida, ou conhecida apenas pelos especialistas, se um sonho não tivesse refulgido na sua mente. Não queria contar apenas a história do seu tempo ou de uma época determinada, mas sim toda a história do mundo, começando pela criação até às guerras que, no seu tempo, ensanguentavam o mundo árabe. E também não queria relatar apenas uma versão de cada facto mas, sim, todas as versões que os homens contam de todos os acontecimentos, de tal forma que o seu livro se tornasse aquele entrelaçado de realidade e de eventualidade, de possibilidade e de impossibilidade, ou de possibilidades opostas, que constitui o universo. […]
Inspirado por estas vozes intermitentes, Tabari escreve as Notícias dos Profetas e dos Reis. […]
Quando chegou o ano de 915 tinha escrito cento e vinte volumes. Tinha quase oitenta
anos e podia morrer.
Esta obra gigantesca perdeu-se. Alguém fez dela um resumo em
doze volumes, deixando de lado muitos dos factos e das versões que Tabari tinha
referido, na sua vontade delirante de ser exaustivo. […] Desta tradução, a
parte inicial, aquela que conta a Bíblia, é provavelmente a mais bela.
Espero que muitos leitores leiam apaixonadamente este livro:
venerável como um texto sagrado e encantador como as Mil e Uma Noites. Ninguém melhor do que Tabari, devoto muçulmano
sunita, pode revelar-nos a forma como as duas civilizações religiosas, que hoje
em dia se combatem tão miseravelmente, se baseiam uma na outra, enroladas como
duas árvores que unem as suas raízes. O Islão adoptou com amor as grandes
figuras do Antigo Testamento: Adão, Abraão, José, Moisés. Salomão: apoderou-se
delas, retocou-as, transformou-as; e, agora, temos a sensação de que a
humanidade ouviu duas vezes a mesma música – sempre a mesma música, orquestrada
de segunda vez de uma forma completamente diferente para nos deliciar com o seu
esplendor e com as cores dos seus sons.
A primeira impressão que nos deixa o mundo islâmico é de ser
muito mais vasto do que o mundo judeo-cristão. […]
No sopé da montanha de Qaf estendem-se duas imensas cidades
de esmeralda, Jabalqa e Jabarsa. […]
Aqui Alá projectou uma história diferente da história humana:
porque os habitantes de Jabalqa e Jabarsa não descendem de Adão e nunca ouviram
falar dele nem de Satanás. […]
O mundo islâmico é ainda mais vasto no tempo. O nascimento de
Adão que, no Antigo Testamento, encerra os seis dias da criação, em
Tabari-Balami é precedido pela criação dos anjps, pela sua revolta, pela
soberania de Satanás e pela insurreição que ocupam milhares de anos no início
dos tempos. Depois nasce Adão. […]
Na Bíblia, a criação de Adão parece instantânea. […] Em
Tabari-Balami tudo acontece muito lentamente. […] Depois, Deus ensina-lhe uma
ciência secreta que não tinha ensinado aos anjos. Ensina ao gigante de argila o
nome dos demónios e das fadas que se encontram na terra, dos quadrúpedes que
estão no mar e fora do mar, dos animais que pastam, que roem, caminham, voam; o
nome das coisas secas e das coisas húmidas, das coisas leves e das coisas
pesadas; do Inverno, do Verão, do céu, da terra, das montanhas, da planície e
do deserto. […]
Passados cem anos, Alá – o Benigno, o Misericordioso – perdoa
a Adão. Desta vez, as lágrimas de alegria, caindo na terra, dão origem ao
narciso, ao amaranto e a todas as flores da planície.
[…] A fábula tem uma dignidade imensa porque pertence ao
reino de Salomão que, no mundo islâmico, assume uma importância que não é
inferior à do reino de Abraão. […]
Com este soberano das fadas e dos ventos, abandonamos a terra
firme onde vivem e sofrem os homens e penetramos no reino da feérie, que nenhuma obstáculo delimita. Já
não é o Génesis o Êxodo ou os Reis com aquelas guerras sanguinárias, aquelas
adorações ímpias e os longos descansos no deserto. Não há senão riqueza,
esplendor e maravilhas. […]
Nesta grande tapeçaria, penso que aquilo de que os leitores
mais gostarão seja sobretudo uma frase: “A primeira coisa que Alá criou foi a
pena e tudo aquilo que quis criar disse à pena que o escrevesse. Depois, quando
se pôs a escrever, Alá criou o céu, a terra, o sol, a lua e os astros e, então,
a esfera terrestre começou a girar”.»
domingo, 24 de setembro de 2023
Coração em chamas
"Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.
[..]
E dessa derrota. derrota íntima, humana, não de um homem particular, mas do ser humano, nasce a exigência de escrever. Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.
E a vitória somente pode dar-se ali onde se sofreu a derrota, nas mesmas palavras.
[..]
Salvar as palavras da sua falsa pompa, da sua vacuidade, endurecendo-as, forjando-as, perduravelmente, é o que é procurado, mesmo sem o saber, por quem deveras escreve.
[..]
Que é o que quer dizer o escritor e para quê dizê-lo? Para quê e para quem?
Quer dizer o segredo; o que não pode dizer-se com a voz por ser demasiado verdade; as grandes verdades não costumam dizer-se a falar. A verdade do que se passa no secreto seio do tempo é o silêncio das vidas, e que não pode dizer-se. «Há coisas que não podem dizer-se», é verdade. Mas isto que não pode dizer-se é o que tem de escrever-se.
Descobrir o segredo e comunicá-lo, são os dois acicates que movem o escritor.
[..]
Na sua solidão descobre-se ao escritor o segredo, não completamente, mas num devir progressivo.
[..]
A verdade precisa de um grande vazio, de um silêncio onde possa alojar-se, sem que nenhuma outra presença se misture com a sua, desfigurando-a.
[..]
Só dá a liberdade quem é livre.
segunda-feira, 21 de agosto de 2023
Incipit Vita Nova ou a Vida Vivificante
María Zambrano. Dela posso dizer: das melhores coisas que li nos últimos tempos e em toda a minha vida. O seu pensamento é denso, funde alquimicamente filosofia e poesia, e alude a tudo o que eu venho pensando, ou melhor, pressentindo nos últimos anos da minha aventura. Deixo dois excertos mas tudo é profundo e delicioso:
"A clareira do bosque é um centro onde nem sempre é possível entrar; da extrema olha-se para ela e o aparecimento de algumas pegadas de animais não ajuda a dar esse passo. É outro reino que uma alma habita e guarda. Algum pássaro avisa e chama para ir até onde a sua voz for marcando. E obedece-se a ela; depois não se encontra nada, nada que não seja um lugar intacto que parece ter-se aberto nesse único instante e que nunca mais se dará assim. Não há que procurá-lo. Não há que procurar. É a lição imediata das clareiras do bosque: não há que procurá-las, nem tão-pouco procurar nada nelas. [...]"
"[...]. Algum animal sem fábula olha nesta lonjura. Algum farrapo desprende-se de uma brancura não vista, algo que não é signo. Nada é signo, como se se vislumbrasse um reino onde o que significa e o significado fosse um só e o mesmo, onde o amor não tenha que ser amparado nem a natureza ande como uma ovelha perdida ou surpreendida que aparece e se esconde."
sábado, 4 de fevereiro de 2023
em louvor do vento
Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos
de uma mulher
que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente
essa mão
inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada
sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente
distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que
roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser
que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e transparentes
e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde
feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar
até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo da sua altura e da sua idade
na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples
ampulheta ou clepsidra
O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade
desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto
todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos
e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade
cega do dia
entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os arames e as mais
variadas saliências da terra
o seu canto levíssimo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo
que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores
um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz da sua
sensibilidade
ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo veludo das
cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade
um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu
dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem
sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia
e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da
noite
Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim
os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente
e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem
não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se
Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz
do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas
muito importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante para mim
As ramadas das árvores agora sim agora devem viver
agora devem manifestar vivamente que vivem
haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía
e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo
para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas
Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite
as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reservas amei
jamais imprimi palavra alguma nas páginas brancas do papel tão brancas e
sucessivas como dias
não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer
Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até à
cabeceira a voz vasta do vento
e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados onde
se deixa grelando a batata
cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente
volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que
o vento vem
é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere
e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro
de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste
Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento
mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos
e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe
e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro
não necessito tomar o metro pedir um gin tónico que vá bebendo gole
a gole no bar deserto pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando
talvez como eu
saboreando o leve sabor amargo do gin desfazendo o limão vendo as cortinas
esvoaçar ao vento
O vento vibra na sua voz de vento alarga aos quatro cantos
aos inumeráveis recantos da noite as espirais translúcidas do seu vulto
infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas
como latas amolgadas e enferrujadas enferrujadas precisamente nas partes amolgadas
como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas
desengonçadas
o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras
da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível
e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro
e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos
e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra
Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta
que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada
que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas
casas sonâmbulas
que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos dispersos e diluídos
primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra
e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes
num trabalho perseverante e esgotante que são joão baptista e cristo
aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto impotentes para levar a cabo
E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há
pouco à minha volta
apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade
vibrar quando quiser até quando quiser e assim vibrando
demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos
do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade
Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como
mas através de um latejo levemente diferente do coração
que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste
por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores
atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha
não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos
apresenta
mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer
Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude
quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho
e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens
cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água
tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um
cerimonial
e rígido e digno da minha estatura liberta enfim das volumosas volutas dos
barbitúricos
aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras
que tenho
Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume
convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível e tempestade
e venha violentamente até mim e varra da minha casa
e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento
e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente
miúdas e não disponham desta voz côncava do vento
Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouco lhe opunham certa resistência
ensaia agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páginas dos
dicionários
afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últimos véus do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputará o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e
perdida do meu corpo
continue vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala
exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssimo instrumento na complexa e simples orquestra do vento
ruy belo
domingo, 22 de janeiro de 2023
México
Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas, navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo.
Também isso te devo.
Hilda Hilst