«Abu Jafar Muhammad at-Tabari nasceu por volta de 839 na Pérsia setentrional e a sua obra de historiador e de teólogo seria esquecida, ou conhecida apenas pelos especialistas, se um sonho não tivesse refulgido na sua mente. Não queria contar apenas a história do seu tempo ou de uma época determinada, mas sim toda a história do mundo, começando pela criação até às guerras que, no seu tempo, ensanguentavam o mundo árabe. E também não queria relatar apenas uma versão de cada facto mas, sim, todas as versões que os homens contam de todos os acontecimentos, de tal forma que o seu livro se tornasse aquele entrelaçado de realidade e de eventualidade, de possibilidade e de impossibilidade, ou de possibilidades opostas, que constitui o universo. […]
Inspirado por estas vozes intermitentes, Tabari escreve as Notícias dos Profetas e dos Reis. […]
Quando chegou o ano de 915 tinha escrito cento e vinte volumes. Tinha quase oitenta
anos e podia morrer.
Esta obra gigantesca perdeu-se. Alguém fez dela um resumo em
doze volumes, deixando de lado muitos dos factos e das versões que Tabari tinha
referido, na sua vontade delirante de ser exaustivo. […] Desta tradução, a
parte inicial, aquela que conta a Bíblia, é provavelmente a mais bela.
Espero que muitos leitores leiam apaixonadamente este livro:
venerável como um texto sagrado e encantador como as Mil e Uma Noites. Ninguém melhor do que Tabari, devoto muçulmano
sunita, pode revelar-nos a forma como as duas civilizações religiosas, que hoje
em dia se combatem tão miseravelmente, se baseiam uma na outra, enroladas como
duas árvores que unem as suas raízes. O Islão adoptou com amor as grandes
figuras do Antigo Testamento: Adão, Abraão, José, Moisés. Salomão: apoderou-se
delas, retocou-as, transformou-as; e, agora, temos a sensação de que a
humanidade ouviu duas vezes a mesma música – sempre a mesma música, orquestrada
de segunda vez de uma forma completamente diferente para nos deliciar com o seu
esplendor e com as cores dos seus sons.
A primeira impressão que nos deixa o mundo islâmico é de ser
muito mais vasto do que o mundo judeo-cristão. […]
No sopé da montanha de Qaf estendem-se duas imensas cidades
de esmeralda, Jabalqa e Jabarsa. […]
Aqui Alá projectou uma história diferente da história humana:
porque os habitantes de Jabalqa e Jabarsa não descendem de Adão e nunca ouviram
falar dele nem de Satanás. […]
O mundo islâmico é ainda mais vasto no tempo. O nascimento de
Adão que, no Antigo Testamento, encerra os seis dias da criação, em
Tabari-Balami é precedido pela criação dos anjps, pela sua revolta, pela
soberania de Satanás e pela insurreição que ocupam milhares de anos no início
dos tempos. Depois nasce Adão. […]
Na Bíblia, a criação de Adão parece instantânea. […] Em
Tabari-Balami tudo acontece muito lentamente. […] Depois, Deus ensina-lhe uma
ciência secreta que não tinha ensinado aos anjos. Ensina ao gigante de argila o
nome dos demónios e das fadas que se encontram na terra, dos quadrúpedes que
estão no mar e fora do mar, dos animais que pastam, que roem, caminham, voam; o
nome das coisas secas e das coisas húmidas, das coisas leves e das coisas
pesadas; do Inverno, do Verão, do céu, da terra, das montanhas, da planície e
do deserto. […]
Passados cem anos, Alá – o Benigno, o Misericordioso – perdoa
a Adão. Desta vez, as lágrimas de alegria, caindo na terra, dão origem ao
narciso, ao amaranto e a todas as flores da planície.
[…] A fábula tem uma dignidade imensa porque pertence ao
reino de Salomão que, no mundo islâmico, assume uma importância que não é
inferior à do reino de Abraão. […]
Com este soberano das fadas e dos ventos, abandonamos a terra
firme onde vivem e sofrem os homens e penetramos no reino da feérie, que nenhuma obstáculo delimita. Já
não é o Génesis o Êxodo ou os Reis com aquelas guerras sanguinárias, aquelas
adorações ímpias e os longos descansos no deserto. Não há senão riqueza,
esplendor e maravilhas. […]
Nesta grande tapeçaria, penso que aquilo de que os leitores
mais gostarão seja sobretudo uma frase: “A primeira coisa que Alá criou foi a
pena e tudo aquilo que quis criar disse à pena que o escrevesse. Depois, quando
se pôs a escrever, Alá criou o céu, a terra, o sol, a lua e os astros e, então,
a esfera terrestre começou a girar”.»
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