Recomendado por duas pessoas muito queridas, Gente Feliz com Lágrimas foi talvez uma das leituras mais penosas e viscerais da minha vida. Nele relembrei a minha infância, o meu pai severo e distante, as primeiras desilusões e a formação de um mistério no qual sempre me soube contida mas nunca decifrada.
À sua maneira, o romance de João de Melo, cativa pelas várias vozes narrativas, pelas metáforas e adjectivos multi-sensoriais extremamente inteligentes, pela história de amor e veneração de Nuno e Marta, e repele pelo modo heavy como nos relata a saga de uma família condenada pelos afectos sufocados, que vão condenando gerações através da herança de gestos que não se efectivaram, de palavras que não se cumpriram. Nos espaços que o afecto não preenche, instala-se a falta e uma solidão inescapável que acaba por consumir a possibilidade mais pura de amor, porque a violência original, a cena primitiva da nossa concepção dificilmente é eliminável.
«Acontecia então que o meu pobre cão de pai latia de prazer. Prisioneira daquele corpo, a mãe sufocava ainda, amarrada pela inconcebível e obstinada força dos braços dele. Era quando ele se esvaía todo na sua golfada morna, pastosa e tão orgulhosamente masculina. Se não repetissem - e raramente o faziam - a mãe erguia-se, ia ao bacio, esfregava-se energicamente a um pano para nós desconhecido ou mesmo inexistente. Quando voltava para a cama, ele dormia tão profundamente como a paz das folhas de figueira nas noites de Verão. Dormia com o mesmo sono dos ratos, sem memória alguma e sem qualquer remorso de nos ter feito o mal do barulho, o mal de ser o único, o dono e senhor daquele corpo profanado no seu pudor (...).
Toda a minha vida girou afinal em torno e em função dessa paixão primitiva e anterior (...). Porque quando tive o outro destino de Marta, dei por mim a amá-la à maneira dele, a gostar de dar-lhe palmadinhas nas nádegas e a fazê-la gemer sob a força dos mesmos abraços. Contudo, muitos anos mais tarde, quando naufraguei nas águas revoltas da minha relação com Marta e perdi o pé à vida, apresentei-me ao mais louco psiquiatra de Lisboa. Um dedo categórico espetou-se-me à frente do nariz e deixou-me petrificado:
- O senhor está é inventando a infelicidade e ficcionando o seu triunfo: parece uma noivinha angustiada na noite de núpcias. A gente pega no escafrando, meu caro Pier Paolo Pasolini, e vai é mergulhar no lodo da infanciazinha. Percebido? Venha daí comigo».
Gente feliz com lágrimas poderia ser a melhor expressão para descrever o povo português, e trata afinal disso mesmo, de gente feliz com lágrimas. De gente que conhece a esperança da infância, a empatia dos irmãos, a crueza amarela de uma pai que nunca se senta para cear no nosso coração, os arrebatamentos do primeiro amor, a ternura de alguns encontros rápidos, a dureza da traição, um rabo sentado num domingo em frente à televisão a engordar solitariamente e uma segunda pomba da paixão que pousa distraidamente no nosso ombro adormecido. O resto destes risos que choram e prantos que riem é uma certa ferida no olhar de quem perdeu a inocência cedo demais, é afinal literatura!
Sem comentários:
Enviar um comentário