domingo, 11 de maio de 2008

Trilogia de Nova Iorque - A vertigem da desrazão


A Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster - autor que conheço de modo leviano, tendo apenas lido o comovente Timbuktu - compõe um mosaico de histórias inquietantes edificadas pelo imaginário de uma cidade sombria e misteriosa. Brincando com as possibilidades do real e dos seus abismos, Auster desafia constantemente e com mestria as expectativas do leitor, sem o nunca o deixar com um sentimento de fraude.

O mais marcante neste livro, composto por três histórias que se entrelaçam como um novelo e nos enredam de tal modo que acabamos por não encontrar o fio do seu feitiço, é o modo como as personagens são arrastadas pela vertigem do irracional e do vazio, sempre comprometidas na sua perdição.

No conto «A Cidade de Vidro», Quinn, um homem devastado pela trágica perda da mulher e do filho, é perturbado a meio da noite por um telefonema de um homem que procura um detective chamado Paul Auster. O acaso despoleta uma série de aventuras e desventuras e Quinn acaba por se empenhar numa identidade que não é sua, até à perda de qualquer identidade, com uma persistência que apenas a solidão e a sua deriva poderão justificar.

As personagens errantes desta cidade ausentam-se do seu quotidiano por um acaso e ficam a viver num tempo marcado apenas pelas suas obsessões, esquecendo rapidamente os meses, os anos e a face do outro, e a escrita de Paul Auster devolve-nos de modo arrepiante o vazio das suas almas estilhaçadas.

Descobrimo-nos no fim que se tratam de seres semelhantes a nós, reveladas de outro modo pela desligação do quotidiano dos mesmos. Humanos apesar de toda a incomunicabilidade e degradação, que tentam sobreviver num mundo em que as velhas respostas já não servem para sossegar as novas inquietações. «Pois as nossas palavras já não correspondem ao mundo. Quando as coisas eram um todo, podíamos confiar nas nossas palavras para nos exprimirem. Mas essas coisas fragmentaram-se aos poucos, rasgaram-se, ruíram num caos. E, no entanto, as nossas palavras permaneceram as mesmas. Não se adaptaram à nova realidade» (p.85).
Das histórias que compõem a trilogia, a que mais me tocou foi a que se intitula «O Quarto Fechado», narrada por um homem que se ocupa da mulher e obra de um amigo de infância enigmaticamente desaparecido. Gostei particularmente da cena de sexo entre o narrador e a mãe do amigo ausente, pela crueza da descrição: «Embora eu estivesse embriagado, não estava assim tão aturdido que não soubesse o que fazer. Mas nem a culpa foi suficiente para me deter. Este momento acabará por passar, dizia-me a mim próprio, e ninguém sairá magoado. Não tem nada a ver com a minha vida, não tem nada a ver com Sophie. Mas nessa altura, enquanto aquilo acontecia, descobri que era mais do que isto. O facto é que eu estava a gostar de foder a mãe de Fanshawe - mas de um modo que não tinha nada a ver com prazer. Eu estava consumido, e pela primeira vez na minha vida não encontrei nenhuma ternura dentro de mim. Estava a foder movido pelo ódio, e estava a transformar aquilo num acto de violência, dilacerando esta mulher como se quissesse pulverizá-la. Eu tinha penetrado na minha própria escuridão, e foi ali que aprendi a coisa mais terrível de todas: que o desejo sexual também pode ser o desejo de matar, que chega uma altura em que é possível escolhermos a morte em detrimento da vida» (p.271).
Mais do que seres de luz e razão como pretendiam os iluministas, somos também seres de sombras movidos por teias irracionais que nos arrastam até à perdição, e é no sexo que podemos vislumbrar a nossa fatal inclinação para a perda, a rendição total numa petit mort, que poderá ser também a única possibilidade de entrega. Somos mais consumidos do que livres consumidores e é geralmente nas acções que julgamos despropositadas que um sentido e nós próprios encontramos uma forma de fuga para outras possibilidades desacorrentadas da obrigação da racionalidade. Trilogia de Nova Iorque fala de tudo isto e muito mais, é uma espécie de policial pós-existencialista que nos arrepia não pelo crime mas pelo castigo que é cumprido pelo próprio carrasco. Os seus personagens colaram-se à minha pele durante várias semanas em que não pude deixar de perceber o apelo do abismo - popularmente chamado de vertigem.

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