“Nestas relações, aliás
eu satisfazia ainda outra coisa, além da sensualidade: o meu amor do jogo. Eu
amava nas mulheres as parceiras de um certo jogo, que tinha, pelo menos, o
sabor da inocência. Veja bem, não posso suportar o tédio e só aprecio na vida
as distracções (…).
Por conseguinte, eu ia
no jogo. Sabia que elas gostavam que se não fosse muito depressa ao fim. Antes
de tudo, era precisa conversa, ternura, como elas dizem (…). Mudava muitas
vezes de papel, mas tratava-se sempre da mesma peça. Por exemplo, o número da
atracção incompreensível, do «não sei quê», do «não há razões, eu não desejava
ser atraído, estava, no entanto, cansado do amor, etc…» era sempre eficaz, posto
que seja um dos mais velhos do repertório. Havia também o da felicidade
misteriosa que nenhuma outra mulher jamais nos deu, que é talvez sem futuro, de
certeza mesmo (…). Eu tinha aperfeiçoado, sobretudo, uma pequena tirada, sempre
bem recebida, e que o senhor aplaudirá, tenho a certeza. O essencial desta
tirada consistia na afirmação dolorosa e resignada, de que eu não era nada, não
valia a pena prenderem-se a mim, a minha vida estava alhures, passava ao lado
da felicidade de todos os dias, felicidade que talvez eu preferisse a tudo o
resto, mas, enfim, era tarde demias. Sobre as razões deste atraso decisivo, eu
guardava segredo, pois sabia que era melhor dormir com o mistério. Em certo
sentido, aliás, acreditava no que dizia, vivia o meu papel. Não admira, pois,
que as minhas parceiras se entusiasmassem também com o delas. As mais sensíveis
das minhas amiguinhas esforçavam-se por me compreender e este esforço levava-as
a melancólicos abandonos. As outras, satisfeitas por verem que eu respeitava as
regras do jogo e tinha a delicadeza de falar antes de agir, passavam sem
esperar às realidades. Tinha então ganho duplamente, pois que, além do desejo
que sentia por elas, satisfazia o amor que eu me dedicava, verificando de cada
vez os meus belos poderes.
Tanto isso é verdade
que, mesmo se acontecia que algumas me não dessem senão um prazer medíocre, eu
tratava, contudo, de reatar com elas, de longe em longe, animado, sem dúvida,
por este desejo singular que é favorecido pela ausência, seguida de uma cumplicidade
de súbito reencontrada, mas também para verificar que os nossos laços se
mantinham ainda e que só a mim competia estreitá-los. Por vezes, chegava mesmo
ao ponto de lhes fazer jurar que não pertenceriam a nenhum outro homem, para
aplacar de uma vez para sempre, as minhas inquietações sobre este ponto. O
coração, todavia, não tomava parte alguma nesta inquietação, nem a imaginação
tão-pouco. Uma certa espécie de pretensão estava, com efeito, tão encarnada em
mim que eu tinha dificuldade em imaginar, apesar da evidência, que uma mulher
que havia sido minha pudesse alguma vez pertencer a outro. Mas este juramento
que elas me faziam libertava-me, prendendo-as. Desde o momento que não
pertenciam a ninguém, podia então decidir-me a romper com elas, o que, de outra
maneira, me era quase sempre impossível. A verificação, no que lhes dizia
respeito, estava feita de uma vez para sempre e o meu poder assegurado por
muito tempo. Curioso, não? É, no entanto, assim, meu caro compatriota. Uns
gritam: «Ama-me!» Outros: «Não me ames!». Mas uma certa raça, a pior e a mais
infeliz: «Não me ames e sê-me fiel!»
Somente, aí está, a
verificação nunca é definitva, é preciso recomeçá-la com cada ser. À força de
recomeçar, contraem-se hábitos. Bem depressa o discurso nos surge sem pensarmos
nisso, segue-se o reflexo: encontramo-nos um dia numa situação de possuir sem
verdadeiramente desejar. Acredite-me, para certos seres, pelo menos, não
possuir o que se não deseja é a coisa mais difícil do mundo.”
Albert Camus, A Queda
Albert Camus, A Queda
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