“Hesito em confessá-lo,
com medo de proferir ainda alguns palavrões: parece-me bem que senti nessa
altura, a necessidade de um amor. Obsceno, não é? Experimentava, no entanto, um
sofrimento surdo, uma espécie de privação que me tornou mais disponível e me
permitiu, meio forçado, meio curioso, tomar alguns compromissos. Pois que tinha
necessidade de amar e ser amado, julguei-me apaixonado. Por outras palavras,
fiz de parvo.
(…)
Tomei-me assim de uma
falsa paixão por uma pateta encantadora, que tinha lido tão bem a literatura
cor-de-rosa que falava do amor com a segurança e a convicção de um intelectual
anunciando a sociedade sem classes. Tentei falar também do amor e acabei por eu
próprio me persuadir. Até, pelo menos, ao momento em que ela se tornou minha
amante e eu compreendi que a literatura cor-de-rosa, que ensinava a falar do
amor, não ensinava a praticá-lo. Depois de ter amado um papagaio, tive de
dormir com uma serpente. Procurei, pois, noutro sítio, o amor prometido pelos
livros e que nunca encontrara na vida.
(…)
Fora do desejo, as
mulheres aborreceram-me para além de tudo o que seria de esperar e,
visivelmente, também eu as aborrecia. Nada de jogos, nada de teatro, eu estava,
sem dúvida, dentro da verdade. Mas a verdade, caro amigo, é uma estopada.
Desesperado do amor e
da castidade, lembrei-me, enfim, de que restava o deboche, que substitui muito
bem o amor, faz calar os risos, restabelece o silêncio e, sobretudo, confere a
imortalidade. Num certo grau de embriaguez lúcida, deitado, alta noite, entre
duas raparigas, e vazio de qualquer desejo, a esperança já não é uma tortura,
repare, o espírito reina sobre todos os tempos, a dor de viver está para sempre
afastada.
(…)
O álcool e as mulheres
forneceram-me, devo confessá-lo, o único alívio de que era digno. Confio-lhe
este segredo, caro amigo, não
receie utilizá-lo. Verá então que o verdadeiro deboche é libertador porque não
cria nenhuma obrigação (…). Deixa-se, ao lá entrar, tanto o medo como a
esperança (…) Servi-me, em todo o caso, sem medida desta libertação (…).
Passarei isso por alto: o senhor sabe que até pessoas muito inteligentes tiram
glória do facto de poderem esvaziar uma garrafa a mais que o vizinho. Eu teria
podido, enfim, encontrar a paz e libertar-me nesta dissipação. Mas, mesmo aí,
encontrei um obstáculo em mim mesmo. Foi o fígado, desta vez, e um cansaço tão
horrível que ainda não me largou. Brincamos aos imortais e ao fim de algumas
semanas já nem sequer sabemos se nos poderemos arrastar até ao dia seguinte.”
2 comentários:
admiráveis sublinhados, vou levar um deles... :)
serve-te à tua vontade ;)
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