sábado, 26 de setembro de 2015

O companheiro de viagem


O que haveria no interior das casas que impedia as pessoas de sair correndo para as ruas, a chorar, como se despertasse a consciência de que não valia a pena viver? O que perpetuava nelas a vida e permitia que sobrevivessem às noites geladas, solitárias e tristes, quando a neve congelava sobre a janela, a escuridão era a mesma dos túmulos, a cama lembrava um caixão, enquanto ficavam deitadas, insones, rangendo os dentes, porque uma mosca que dormia seu sono invernal despencara do tecto sobre o nariz? O que animava a espera sem sentido pela manhã? O que haveria amanhã – santa missa, casamento ou morte – em cujo nome seria digno passar às golfadas a noite gélida, longa e amarga, quando o relógio da torre mal batia as horas?


Esta novela foi a minha introdução ao escritor húngaro Gyula Krúdy. Não me cativou por aí além. Talvez a tradução brasileira não fosse o melhor umbral. Para tirar teimas, adquiri  Sunflower.

Cada um de alturas diferentes


Aquele tempo em que pensava estar apaixonado
e calmamente o disse
não era muito diferente do tempo
em que estava verdadeiramente apaixonado
e dormia pouco e falava em voz alta
para a parede
e descobria o génio escondido
das minhas mãos.
E aquele tempo em que me sentia menos apaixonado,
menos que alguém,
era, para ser honesto, não muito diferente
também.
Cada um era ridículo à sua maneira
e simultaneamente terno,
por vezes, até o falso é terno.
Fico estupefacto ao pensar
nos vários beijos de que éramos capazes.
Cada um despenhou-se de alturas
diferentes, e isso é simplesmente a lei.
E o grande barulho
da grande queda parecia perfeitamente branco
passados alguns anos.
Isso é o que me deixa mais estupefacto.
Stephen Dunn

domingo, 13 de setembro de 2015

Uma prosa fosforescente


Para além das árvores, regressei à rotina acompanhada por mais um mistério: o escritor polaco Bruno Schulz.
Já tinha lido As Lojas de Canela mas decidi levar o livro comigo para me aninhar nas longas viagens de comboio. E ainda bem que o fiz. Ai, que prazer tornar a ler Agosto, o primeiro conto do livro e a melhor descrição de um verão abrasador da infância que li, em Agosto, no meio da Polónia.
Como falar de Schulz? Aliás, como traduzir por palavras qualquer mistério, qualquer encantamento que nos cativa? Tarefa nada fácil. Tentemos, no entanto, uma breve aproximação.
A primeira coisa que me ocorre dizer é que Schulz escreve de uma maneira muito particular e incomparável. Claro que podia pôr-me aqui a pensar e detectar linhagens mas, ainda assim, prefiro ater-me ao caso isolado que a sua literatura constitui. Comparam-no muitas vezes a Kafka e não consigo entender porquê. É verdade que ambos eram judeus, de algum modo ocupados por metamorfoses e a sombra do pater famílias (em Schulz, é o pai que sofre mil metamorfoses). No entanto, as dissonâncias são mais essenciais que tais meras coincidências: enquanto Kafka concentrava os seus esforços na descrição do absurdo da realidade através de uma prosa fria e depurada, como um punhal, Schulz voava para bem longe, montado numa prosa féerica e sensual, rumo à porosidade do sonho e do encantamento.
Em Cracóvia, comprei a edição inglesa que, para além de As Lojas de Canela, inclui ainda um conto, O Cometa, que não figura na edição portuguesa (belíssimo devaneio apocalíptico!) e outro tomo de contos, Sanatorium under the sign of the hourglass (ou Sanatório do Gato-Pingado) e alguns contos esparsos. Assim, pude adentrar-me ainda mais dentro desse imaginário exuberante e perturbador e verificar como Schulz foi construindo para si uma mitologia singular em torno de vários tópicos, personagens e geografias recorrentes, nomeadamente as estações do ano (existirá um mistério mais acessível que o seu eterno retorno?), os pássaros, o Livro, o Labirinto, o sono, as mulheres dominadoras como a longilínea Adela, as extravagâncias do Pai, a Praça do Mercado e a casa enorme com múltiplos quartos esquecidos pelo Tempo, etc..
Tanto a família, como a cidade, oscilam permanentemente entre dois estados, o sono onírico e a crescente voracidade do Real. Estão ora sob o signo do tédio, ora sob a ameaça do encantamento poético. E assim, se começa a perceber a função de toda esta potente maquinaria imagética. E tal vislumbre remete-nos sempre para a triste biografia de Schulz, que acabou os seus dias enclausurado num gueto em Drohobycz, a sua cidade natal, até ser assassinado pelas costas por um oficial nazi. Anos antes, por carta, Schluz, confessava: “também não sei viver sem nenhum encanto, sem um pouco de tempero, de condimento que exalte a vida”.
Há sempre um tempo, em que os encantos rareiam. Aqueles foram sem dúvida tempos muito sombrios. E uma alma à míngua só podia confiar na sua imaginação para sobreviver. Now at last one can understand the great and sad machinery of spring. (…) Where would writers find their ideas, how would they muster the courage for invention, had they not been aware of these reserves, this frozen capital, these funds salted away in the underworld?
A escrita de Schulz é isso mesmo, uma lição de sobrevivência pela digestão dos encantamentos mais elementares. Reactivando os mais potentes arquétipos inconscientes, Schulz sugere-nos, com algumas pinceladas mestras, uma paisagem primeva, muito próxima da memória do corpo e da Infância. A sua prosa fosforescente, qual fogo-fátuo ou o verão mais mortal, ilumina por breves instantes um substrato mais mágico, sempre à superfície do quotidiano, cujo magma permanentemente tenta eclodir e repetidamente falha. There are things that cannot ever occur with any precision. They are too big and too magnificent to be contained in mere facts. They are merely trying to occur, they are checking whether the ground of reality can carry them. And they quickly withdraw, fearing to lose their integrity in the frailty of realization. And if they break into their capital, lose a thing or two in these attempts at incarnation, then soon, jealously, they retrieve their possessions, call them in, reintegrate: as a result, white spots appear in our biography – scented stigmata, the faded silvery imprints of the bare feet of angels, scattered footmarks on our nights and days – while the fullness of life waxes, incessantly supplements itself, and towers over us in wonder after wonder.
 É assim o trabalho do mito, sempre enigmático e esquivo. Ou como diria Schulz, “A matéria não é para brincadeiras, enche-se sempre de um trágico sério.” Como tal, o seu resultado é sempre dúplice, e da mesma fonte jorram imagens simultaneamente solares e sombrias, permeadas tanto pela magia mais encantatória, como pela solidão mais profunda. “Um imenso girassol içado até à ponta de um formidável pé com elefantíase, aguardava o fim dos dias nesse luto amarelo, vergado pela carga da sua monstruosa corpulência. Porém, as ingénuas campainhas de subúrbio e as simples flores do percal nada podiam contra tudo isto e limitavam-se a estar muito hirtas nas suas camisas cor-de-rosa, insensíveis ao grande drama do girassol”.
Gostei muito de todos os contos. Se tivesse de eleger os predilectos, talvez escolhesse Agosto, A Visitação, The Book, Spring, Sanatorium under the signo f the hourglass e a carta, longamente citada por Aníbal Fernandes, na introdução à edição portuguesa. Mas é a totalidade da sua obra que me fascina. Mais do que um escritor, Schulz era sobretudo um sonhador: “He proclaimed a Republic of Dreams, a sovereign realm of poetry”. Não admira, portanto, que tenha sido morto pelas costas.

Nos escritos que nos deixou, existem tantas memórias de verões agonizantes, que deixam na alma uma nostalgia perene pela criatividade imolada. Como eu terei deste verão que agora se despenha pelas calçadas de Lisboa. Felizmente, existem também inúmeros delírios poéticos, capazes de acender uma alma no meio da mais escura negritude.

Bruno Schulz


“Não sei de onde chegam à nossa infância certas imagens que vão ter uma significação decisiva para nós. Desempenham o papel dos fios postos nas soluções químicas, e à sua volta cristaliza-se o que é nosso sentido do mundo. Para mim, a imagens destas também pertence o filho levado pelo pai no espaço de uma noite enorme, e que conversa com a escuridão. O pai aperta-o contra si, rodeia-o com os braços, defende-o do elemento que fala, fala sem parar, mas para a criança os braços dele são transparentes, é atingida pela noite, e através das carícias do pai ouve sem tréguas a terrível persuasão. Responde à pergunta da noite esgotada e fatalista, tragicamente permissível, por inteiro devotada ao elemento sem fim de que não pode fugir.
Segundo me parece há temas que desde sempre nos estão destinados, que logo à entrada da vida nos esperam (…).
Essas imagens têm grande força, criam o capital sólido da alma que bem cedo nos é fornecido com pressentimentos e sensações de que só temos uma vaga consciência. Penso que o resto da vida é passado a interpretar estas intuições, a dominar todo um conteúdo seu que devemos conquistar, a filtrá-las ao longo de toda uma dimensão intelectual que podemos atingir. Estas imagens precoces indicam aos artistas os limites da sua criatividade; criatividade que mais não será do que o resultado de dados já existentes. Não descobrem nada de novo, só ensinam a compreender de vez e melhor o segredo que lhes foi oferecido. Aliás, a arte nunca chega a encontrar o sentido oculto de um tal segredo. Que vai permanecer obscuro. O nó à volta da alma não é frouxo, não é dos que cedem quando se puxa a ponta da corda. Pelo contrário, é cada vez mais apertado. E então manipulamos esse nó, acompanhamos as suas voltas, procuramos-lhe o fim, e com essas manipulações é que a arte nasce.
(…)
Qual é o sentido desta desilusão universal perante a realidade, não saberei dizê-lo. Só afirmo que não seria suportável se não soubesse, numa outra dimensão qualquer, indemnizar. De certo modo sentimos uma satisfação profunda quando a trama da realidade abranda, sentimo-nos interessados por essa bancarrota.
Falou-se da tendência destruidora do meu livro. Sob o ponto de vista de certos valores estabelecidos talvez seja verdade. A arte opera, porém, no sentido da profundidade anterior à moralidade; no ponto em que o seu valor só está in statu nascendi.
Como resposta espontânea da vida, a arte distribui tarefas à ética, e não o contrário. Se a arte só devesse confirmar o que já foi noutro lado estabelecido, seria inútil. Tem o papel de sonda mergulhada no inominável. O artista é um aparelho que grava percursos em profundidade, no ponto em que se opera a formação do valor.
(…)
A que género pertence As Lojas de Canela? Como classificá-lo? (…) Trata-se de uma autobiografia ou, melhor, de uma genealogia do espírito; genealogia kat’exochen porque descreve o nascimento da alma e segue-a até às profundezas onde ela se perde em devaneios mitológicos. Sempre senti que as raízes de um indivíduo, desde que seguidas até longe, se perdem numa qualquer floresta virgem e mítica. É esse o fundo definitivo para além do qual não podemos prosseguir.
(…)
De certo modo estas «histórias» são reais, representam a minha maneira de viver, o meu particular destino. E a dominante de tal destino é uma solidão profunda, um distanciamento das coisas da vida de todos os dias.
A solidão é o reagente que leva a realidade ao ponto de fermentação, à decantação das formas e das cores.”


Bruno Schulz

sábado, 5 de setembro de 2015

Europa Central. Agosto 2015


Esquece tudo. As pontes ao entardecer, o infinito dos carris, a recordação do Holocausto e toda a arte, se assim quiseres.
Toda a viagem é interior e as árvores são o facto mais poético.
Como tudo o que é essencial, elas habitavam já a infância, esse território mágico de imagens cadentes que se vão parindo durante toda uma vida. As que davam fruto, alinhavam-se em fileiras intermináveis, disputando taco a taco com o Verão. Nessas tardes, a alegria impunha-se em batalhas campais sem quaisquer contemplações femininas. Era «mata» ou morre – e nunca houve tanta fé numa mão como naquela que arremessava ridente as frutas-munições.
No entanto, era preciso salvaguardar a todo o momento a cabeça. Que vacilava inevitavelmente com as primeiras chuvas. Something is broken inside me. Os frutos invernais alagavam-se então em lágrimas cítricas, partilhadas com o cão Tonecas, fiel companheiro da tristeza.
Além disso, havia também a centenária figueira, testemunha de várias desventuras geracionais, e a bravia nogueira que, em noites ventosas, nos aterrorizava em duelo com os fios eléctricos, trovejando furiosa contra os céus. E as mil moitas que o vizinho Careca esculpia para se ausentar das agruras diárias e confundir com a vegetação. Uma delas, tinha um portal invisível e lá dentro o tempo escorria de outra forma, ao compasso de vários cigarros e ao abrigo de qualquer olhar humano. Ali, eu reinava, confiante nos tempos vindouros, fumando as conquistas por vir.
Mas as árvores não são todas iguais e há qualquer coisa de especial com as da Europa Central. Animadas por um rosto alado, todo o entardecer as encontra barricadas de quietude. As suas sombras abrigam todas as memórias pacificadas e vários animais microscópicos inéditos. Quando tentamos descrever o vento que as agita ou as sombras abençoadas que delas escorrem, somos chegados ao cabo da linguagem, à beira do abismo do encantamento.
Viajamos sobretudo para descobrir a nossa mitologia singular. Na plataforma de uma estação, um pai despede-se da filha com as palavras possíveis. Pede-lhe que lhe escreva nas horas mortas, contando como são as copas das árvores nesses países distantes. Parcamente desesperadas, as suas mãos magras percorrem os bolsos rotos em busca das migalhas restantes. Só a beleza pode suster a vida olvidada de todo o sentido. A menina não entende nada, é muito nova. Porém, anos mais tarde, volvidas muitas paixões breves e indolores, essa mesma menina, então mulher com a atenção amadurecida para os factos mais íntimos, estará noutra plataforma, noutra estação, quando lhe chega a certeza de que o verde é a cor mais enigmática.
Apesar disso, os comboios continuam a desfilar nos carris.

Esquece tudo. Menos os marinheiros, o fogo e as árvores. São esses os maiores mistérios.