Esquece
tudo. As pontes ao entardecer, o infinito dos carris, a recordação do
Holocausto e toda a arte, se assim quiseres.
Toda
a viagem é interior e as árvores são o facto mais poético.
Como
tudo o que é essencial, elas habitavam já a infância, esse território mágico de
imagens cadentes que se vão parindo durante toda uma vida. As que davam fruto,
alinhavam-se em fileiras intermináveis, disputando taco a taco com o Verão. Nessas
tardes, a alegria impunha-se em batalhas campais sem quaisquer contemplações
femininas. Era «mata» ou morre – e nunca houve tanta fé numa mão como naquela
que arremessava ridente as frutas-munições.
No
entanto, era preciso salvaguardar a todo o momento a cabeça. Que vacilava
inevitavelmente com as primeiras chuvas. Something
is broken inside me. Os frutos invernais alagavam-se então em lágrimas
cítricas, partilhadas com o cão Tonecas, fiel companheiro da tristeza.
Além
disso, havia também a centenária figueira, testemunha de várias desventuras
geracionais, e a bravia nogueira que, em noites ventosas, nos aterrorizava em
duelo com os fios eléctricos, trovejando furiosa contra os céus. E as mil
moitas que o vizinho Careca esculpia para se ausentar das agruras diárias e
confundir com a vegetação. Uma delas, tinha um portal invisível e lá dentro o
tempo escorria de outra forma, ao compasso de vários cigarros e ao abrigo de
qualquer olhar humano. Ali, eu reinava, confiante nos tempos vindouros, fumando
as conquistas por vir.
Mas
as árvores não são todas iguais e há qualquer coisa de especial com as da
Europa Central. Animadas por um rosto alado, todo o entardecer as encontra
barricadas de quietude. As suas sombras abrigam todas as memórias pacificadas e
vários animais microscópicos inéditos. Quando tentamos descrever o vento que as
agita ou as sombras abençoadas que delas escorrem, somos chegados ao cabo da
linguagem, à beira do abismo do encantamento.
Viajamos
sobretudo para descobrir a nossa mitologia singular. Na plataforma de uma
estação, um pai despede-se da filha com as palavras possíveis. Pede-lhe que lhe
escreva nas horas mortas, contando como são as copas das árvores nesses países
distantes. Parcamente desesperadas, as suas mãos magras percorrem os bolsos
rotos em busca das migalhas restantes. Só a beleza pode suster a vida olvidada
de todo o sentido. A menina não entende nada, é muito nova. Porém, anos mais
tarde, volvidas muitas paixões breves e indolores, essa mesma menina, então
mulher com a atenção amadurecida para os factos mais íntimos, estará noutra
plataforma, noutra estação, quando lhe chega a certeza de que o verde é a cor
mais enigmática.
Apesar
disso, os comboios continuam a desfilar nos carris.
Esquece
tudo. Menos os marinheiros, o fogo e as árvores. São esses os maiores
mistérios.
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