“Não
sei de onde chegam à nossa infância certas imagens que vão ter uma significação
decisiva para nós. Desempenham o papel dos fios postos nas soluções químicas, e
à sua volta cristaliza-se o que é nosso sentido do mundo. Para mim, a imagens
destas também pertence o filho levado pelo pai no espaço de uma noite enorme, e
que conversa com a escuridão. O pai aperta-o contra si, rodeia-o com os braços,
defende-o do elemento que fala, fala sem parar, mas para a criança os braços
dele são transparentes, é atingida pela noite, e através das carícias do pai
ouve sem tréguas a terrível persuasão. Responde à pergunta da noite esgotada e
fatalista, tragicamente permissível, por inteiro devotada ao elemento sem fim
de que não pode fugir.
Segundo
me parece há temas que desde sempre nos estão destinados, que logo à entrada da
vida nos esperam (…).
Essas
imagens têm grande força, criam o capital sólido da alma que bem cedo nos é
fornecido com pressentimentos e sensações de que só temos uma vaga consciência.
Penso que o resto da vida é passado a interpretar estas intuições, a dominar
todo um conteúdo seu que devemos conquistar, a filtrá-las ao longo de toda uma
dimensão intelectual que podemos atingir. Estas imagens precoces indicam aos
artistas os limites da sua criatividade; criatividade que mais não será do que
o resultado de dados já existentes. Não descobrem nada de novo, só ensinam a
compreender de vez e melhor o segredo que lhes foi oferecido. Aliás, a arte
nunca chega a encontrar o sentido oculto de um tal segredo. Que vai permanecer
obscuro. O nó à volta da alma não é frouxo, não é dos que cedem quando se puxa
a ponta da corda. Pelo contrário, é cada vez mais apertado. E então manipulamos
esse nó, acompanhamos as suas voltas, procuramos-lhe o fim, e com essas
manipulações é que a arte nasce.
(…)
Qual
é o sentido desta desilusão universal perante a realidade, não saberei dizê-lo.
Só afirmo que não seria suportável se não soubesse, numa outra dimensão
qualquer, indemnizar. De certo modo sentimos uma satisfação profunda quando a
trama da realidade abranda, sentimo-nos interessados por essa bancarrota.
Falou-se
da tendência destruidora do meu livro. Sob o ponto de vista de certos valores
estabelecidos talvez seja verdade. A arte opera, porém, no sentido da
profundidade anterior à moralidade; no ponto em que o seu valor só está in statu nascendi.
Como
resposta espontânea da vida, a arte distribui tarefas à ética, e não o
contrário. Se a arte só devesse confirmar o que já foi noutro lado
estabelecido, seria inútil. Tem o papel de sonda mergulhada no inominável. O
artista é um aparelho que grava percursos em profundidade, no ponto em que se
opera a formação do valor.
(…)
A
que género pertence As Lojas de Canela?
Como classificá-lo? (…) Trata-se de uma autobiografia ou, melhor, de uma
genealogia do espírito; genealogia kat’exochen
porque descreve o nascimento da alma e segue-a até às profundezas onde ela se
perde em devaneios mitológicos. Sempre senti que as raízes de um indivíduo,
desde que seguidas até longe, se perdem numa qualquer floresta virgem e mítica.
É esse o fundo definitivo para além do qual não podemos prosseguir.
(…)
De
certo modo estas «histórias» são reais, representam a minha maneira de viver, o
meu particular destino. E a dominante de tal destino é uma solidão profunda, um
distanciamento das coisas da vida de todos os dias.
A
solidão é o reagente que leva a realidade ao ponto de fermentação, à decantação
das formas e das cores.”
Bruno
Schulz
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