Para
além das árvores, regressei à rotina acompanhada por mais um mistério: o
escritor polaco Bruno Schulz.
Já
tinha lido As Lojas de Canela mas
decidi levar o livro comigo para me aninhar nas longas viagens de comboio. E
ainda bem que o fiz. Ai, que prazer tornar a ler Agosto, o primeiro conto do livro e a melhor descrição de um verão
abrasador da infância que li, em Agosto, no meio da Polónia.
Como
falar de Schulz? Aliás, como traduzir por palavras qualquer mistério, qualquer
encantamento que nos cativa? Tarefa nada fácil. Tentemos, no entanto, uma breve
aproximação.
A
primeira coisa que me ocorre dizer é que Schulz escreve de uma maneira muito
particular e incomparável. Claro que podia pôr-me aqui a pensar e detectar
linhagens mas, ainda assim, prefiro ater-me ao caso isolado que a sua
literatura constitui. Comparam-no muitas vezes a Kafka e não consigo entender
porquê. É verdade que ambos eram judeus, de algum modo ocupados por
metamorfoses e a sombra do pater famílias
(em Schulz, é o pai que sofre mil metamorfoses). No entanto, as dissonâncias
são mais essenciais que tais meras coincidências: enquanto Kafka concentrava os
seus esforços na descrição do absurdo da realidade através de uma prosa fria e
depurada, como um punhal, Schulz voava para bem longe, montado numa prosa
féerica e sensual, rumo à porosidade do sonho e do encantamento.
Em
Cracóvia, comprei a edição inglesa que, para além de As Lojas de Canela, inclui ainda um conto, O Cometa, que não figura na edição portuguesa (belíssimo devaneio
apocalíptico!) e outro tomo de contos, Sanatorium
under the sign of the hourglass (ou Sanatório
do Gato-Pingado) e alguns contos esparsos. Assim, pude adentrar-me ainda
mais dentro desse imaginário exuberante e perturbador e verificar como Schulz
foi construindo para si uma mitologia singular em torno de vários tópicos,
personagens e geografias recorrentes, nomeadamente as estações do ano (existirá
um mistério mais acessível que o seu eterno retorno?), os pássaros, o Livro, o
Labirinto, o sono, as mulheres dominadoras como a longilínea Adela, as
extravagâncias do Pai, a Praça do Mercado e a casa enorme com múltiplos quartos
esquecidos pelo Tempo, etc..
Tanto
a família, como a cidade, oscilam permanentemente entre dois estados, o sono
onírico e a crescente voracidade do Real. Estão ora sob o signo do tédio, ora
sob a ameaça do encantamento poético. E assim, se começa a perceber a função de
toda esta potente maquinaria imagética. E tal vislumbre remete-nos sempre para
a triste biografia de Schulz, que acabou os seus dias enclausurado num gueto em
Drohobycz, a sua cidade natal, até ser assassinado pelas costas por um oficial
nazi. Anos antes, por carta, Schluz, confessava: “também não sei viver sem nenhum encanto, sem um pouco de tempero, de
condimento que exalte a vida”.
Há
sempre um tempo, em que os encantos rareiam. Aqueles foram sem dúvida tempos
muito sombrios. E uma alma à míngua só podia confiar na sua imaginação para
sobreviver. “Now at last one can understand the great and
sad machinery of spring. (…) Where would writers find their ideas, how would
they muster the courage for invention, had they not been aware of these
reserves, this frozen capital, these funds salted away in the underworld?”
A
escrita de Schulz é isso mesmo, uma lição de sobrevivência pela digestão dos
encantamentos mais elementares. Reactivando os mais potentes arquétipos inconscientes,
Schulz sugere-nos, com algumas pinceladas mestras, uma paisagem primeva, muito
próxima da memória do corpo e da Infância. A sua prosa fosforescente, qual
fogo-fátuo ou o verão mais mortal, ilumina por breves instantes um substrato
mais mágico, sempre à superfície do quotidiano, cujo magma permanentemente
tenta eclodir e repetidamente falha. “There are things that cannot ever
occur with any precision. They are too big and too magnificent to be contained
in mere facts. They are merely trying to occur, they are checking whether the
ground of reality can carry them. And they quickly withdraw, fearing to lose
their integrity in the frailty of realization. And if they break into their
capital, lose a thing or two in these attempts at incarnation, then soon,
jealously, they retrieve their possessions, call them in, reintegrate: as a
result, white spots appear in our biography – scented stigmata, the faded
silvery imprints of the bare feet of angels, scattered footmarks on our nights
and days – while the fullness of life waxes, incessantly supplements itself,
and towers over us in wonder after wonder.”
É
assim o trabalho do mito, sempre enigmático e esquivo. Ou como diria Schulz, “A matéria não é para brincadeiras, enche-se
sempre de um trágico sério.” Como tal, o seu resultado é sempre dúplice, e
da mesma fonte jorram imagens simultaneamente solares e sombrias, permeadas tanto
pela magia mais encantatória, como pela solidão mais profunda. “Um imenso girassol içado até à ponta de um
formidável pé com elefantíase, aguardava o fim dos dias nesse luto amarelo,
vergado pela carga da sua monstruosa corpulência. Porém, as ingénuas campainhas
de subúrbio e as simples flores do percal nada podiam contra tudo isto e
limitavam-se a estar muito hirtas nas suas camisas cor-de-rosa, insensíveis ao
grande drama do girassol”.
Gostei
muito de todos os contos. Se tivesse de eleger os predilectos, talvez
escolhesse Agosto, A Visitação, The Book, Spring, Sanatorium under the signo f the hourglass
e a carta, longamente citada por Aníbal Fernandes, na introdução à edição
portuguesa. Mas é a totalidade da sua obra que me fascina. Mais do que um
escritor, Schulz era sobretudo um sonhador: “He proclaimed a Republic of Dreams, a sovereign realm of poetry”. Não
admira, portanto, que tenha sido morto pelas costas.
Nos
escritos que nos deixou, existem tantas memórias de verões agonizantes, que
deixam na alma uma nostalgia perene pela criatividade imolada. Como eu terei
deste verão que agora se despenha pelas calçadas de Lisboa. Felizmente, existem
também inúmeros delírios poéticos, capazes de acender uma alma no meio da mais
escura negritude.
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