domingo, 8 de novembro de 2015

albertine sarrazin



Querida Albertine,

Como não te amar na tua insubmissão, na tua liberdade livre ainda que manca?

Sigo-te no teu voo para lá de todos cárceres da alma e dos que nos querem sobrecarregar com o peso do seu amor. Ah, «acreditaste que me podias transplantar sentimentos, coser-me um pedaço do teu coração…». Aterras nove metros abaixo, no duro solo da liberdade. Partes o astrágalo e estás à mercê da bondade dos outros, tu que achas que tudo te é devido mas gostas de ser tu a servir-te.
«Quando a carcaça se liberta, o espírito, que até então era a única escapatória, torna-se, pelo contrário, escravo dos mecanismos. A humildade que fingíamos torna-se real.» A liberdade é árdua, pequena, tão cheia de artimanhas e prisões agridoces. Mas tu és dura na queda, recusas obstinadamente qualquer amarra ou gratidão. Só que desta vez a queda desdobra-se em duas e encontras o mais doce dos embates: o Amor.

Acabar esta garrafa e este maço, o resto não importa. Recuperei a esperança.
(…)
Enrosco-me em torno da chama estática que o álcool acendeu em mim, deixo o meu pé pendurado ao lado da roda, e agarro-me, com os dois braços, aos ombros de Julien.
É o início de um novo século.

É o início de um novo século: nem mais. A tua traquinice namora com as palavras, acerta-lhes no âmago. «Eu tinha-me evadido na altura da Páscoa, e nada ressuscitava, nada morria nem vivia.» A crueldade, tão essencial à tua sobrevivência, encontra a ternura. Tens ciúmes do sono do teu homem, do homem que te fez mulher, de corpo e coração.

Ele intimida-me como uma coisa sagrada ou proibida. É ele, Anne, é o teu amor, mas ao mesmo tempo um desses tipos que todas as manhãs saem da prisão ou que passam diante da porta do bar. Será assim tão natural, tão necessário amar precisamente este» O que é, de onde veio, essa coisa que passa e crepita do seu corpo para o meu?

Mas tu não te conformas, não foste feita para esse papel de mulherzinha que espera. Por isso, assim que podes andar, regressas à rua, à vida. Lá vais tu a andar, cambaleante, pelas ruas de Paris, à caça de clientes, e eu fico a admirar-te a ligeireza dos passos. Miúda, gosto do teu pensamento independente, do modo como retribuis a indiferença a que alguns te votam. «Não por desprezo, mas porque não sei forçar os ouvidos e os corações.»

Esta noite eu estava particularmente quezilenta. Recusei comer nas toalhas de papel do restaurante, disse que os lençóis estavam sujos e a água da torneira morna… Deitados, à distância de dez centímetros um do outro, evitávamo-nos. Jean foge das minhas palavras e eu das suas mãos. Ele gosta de mim e isso aborrece-me, pois só gosto da cama dele. Mas quanto mais implico, mais ele se cala, mais ele se desdobra em paciência e gentileza… E eu sinto-me envergonhada. Para arranjar coragem, escorropicho a garrafa que, desde que venho aqui, continua esquecida em cima do cosy obsessivamente limpo e arrumado, e decido ser simpática. De olhos fechados, aceito Jean, reconheço a sua ternura e o seu saber, imagino a felicidade que ele me deveria proporcionar e ao lado da qual passo, com uma expressão compungida no rosto. Ai, Julien, Julien…

(…)

Sejamos putas e digamos: «Querido…» O tipo aperta-me contra o seu peito magro e, com todo o seu sistema piloso eriçado e o nariz fremente, diz que me ama, que não sou uma rameira como as outras, que aquilo não é trabalho para mim e que ele fará tudo para me tirar daquela vida.
(…)
Ontem Jean, hoje este gajo! Que chatos que eles são com aqueles “amo-te”, como estão longe do amor!

Vai, Albertine, anda! Cicatrizada, de andar manco, curada de tudo, excepto do amor…


História de um amor


«Mas nada disto consegue dar conta do laço invisível pelo qual desde o início nos sentimos unidos. Podíamos até ser profundamente diferentes, que eu não sentia menos que qualquer coisa de fundamental nos era comum, uma espécie de ferida originária – há pouco eu falava de “experiência fundadora”: a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma em ti e em mim. Pouco importa: para ti e para mim ela significava que não tínhamos no mundo um lugar assegurado. Teríamos apenas aquele que construíssemos.

(…)

Desde a tua primeira infância que viveste na insegurança (…). Estavas condenada a ser forte porque todo o teu universo era precário. Sempre te senti a força e, ao mesmo tempo, a fragilidade subjacente. Eu gostava da tua fragilidade superada, admirava a tua força frágil. Éramos ambos filhos da precariedade e do conflito. Éramos feitos para nos protegermos mutuamente contra uma coisa e outra. Tínhamos necessidade de criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que nos foi originariamente negado. Mas era necessário, para isso, que o nosso amor fosse também um pacto para a vida.

(…)


Vigio a tua respiração, a minha mão aflora-te. Cada um de nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, quereríamos passá-la juntos.»


«É a angústia, sabe? Esta fodida angústia que arrasta isto tudo…»


«Ao abrir a porta da gerência, envidraçada com vidro japonês, Erdosain quis retroceder; compreendeu que estava perdido, mas já era tarde demais.» Assim começa Os Sete Loucos de Roberto Arlt, um autor que me vinha recomendado pelo Cortázar, desde a minha última viagem pelas livrarias madrilenas.

Não é uma leitura divertida, muito pelo contrário. Apesar da verve quase folhetinesca, a narrativa jamais abandona a sua curva descendente, transbordando de angústia por todos os escaninhos: «A esta atmosfera de sonho e inquietude que o fazia atravessar os dias como um sonâmbulo, Erdosain chamara “a zona da angústia”.»

Os acontecimentos complicavam-se… e ele, entretanto, quem era no meio daquelas engrenagens que o iam cercando, adiantando-se cada vez mais na sua vida, submergindo-o num lodaçal que o exasperava? Além disso, havia aquilo… a incapacidade de pensar, de pensar através de um raciocínio de linhas nítidas, como são as jogadas de xadrez e uma incoerência mental que o enfastiava contra todos.
(…)
Tinha agora a sensação de que a sua alma se tinha apartado para sempre de todo o afecto terrestre. E a sua angústia era a de um homem que traz na sua consciência uma jaula sinistra onde, entre espinhas de peixe, bocejam, tingidos de sangue, elásticos tigres, afilando o olho para preparar o grande salto.

O livro está pejado de boutades geniais - como por exemplo, «Aquilo a que chamamos loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros» -, impossível citar todas. Mas o magma essencial localiza-se nas muitas vidas humilhadas e ofendidas na sua aspiração mais vital. Todas as personagens falam de como esta vida não é o que devia ser e de como podia e devia ser muito mais: «Porque razão a felicidade humana ocupa tão pouco espaço?»

- Deve ser triste.
- Sim, é muito triste ver os outros felizes e ver que não compreendem que alguém será um desgraçado toda a vida. Lembro-me de, à hora da sesta, entrar no meu quarto e, em vez de tratar da roupa, pensar: Serei criada toda a vida? Já não me cansava o trabalho, mas sim os meus pensamentos. Nunca reparou como são obstinados, os pensamentos tristes?
(…)
- Você teria coragem de se matar?
- Não é o que você diz. Já não há coragem nem cobardia. Vem do fundo de mim a sensação de que o suicídio é como ir arrancar um dente. Quando penso assim, tudo em mim descansa. É certo que eu tinha pensado noutras viagens e noutras paragens, noutra vida. Há algo em mim que deseja tudo o que é bonito e delicado. Muitas vezes pensei que sim… suponhamos esses quinze mil pesos que vou levantar amanhã… podia ir para as Filipinas… para o Equador… para recomeçar a minha vida, casar-me com uma donzela milionária e delicada… estaríamos deitados à hora da sesta em espreguiçadeiras debaixo de coqueiros, e os negros oferecer-nos-iam laranjas descascadas. E eu olharia tristemente para o mar… Sabe, esta certeza que diz que para onde quer que vá olharei tristemente para o mar… esta certeza de que nunca mais serei feliz… no início enlouqueceu-me… e agora resignei-me…

«Já não há coragem nem cobardia.» Apenas uma angústia estranhamente familiar. No final, nem crime nem castigo. Nenhuma redenção, apenas simulacros. Ontem fui assistir a uma «homenagem» ao Vítor Silva Tavares, que dizia que uma obra de arte para ser obra de arte tem de ter sobretudo inferno. Pois aqui, sobeja.