«Ao abrir a porta da gerência, envidraçada com vidro
japonês, Erdosain quis retroceder; compreendeu que estava perdido, mas já era
tarde demais.» Assim começa Os Sete
Loucos de Roberto Arlt, um autor que me vinha recomendado pelo Cortázar,
desde a minha última viagem pelas livrarias madrilenas.
Não é uma leitura divertida, muito pelo contrário.
Apesar da verve quase folhetinesca, a narrativa jamais abandona a sua curva
descendente, transbordando de angústia por todos os escaninhos: «A esta
atmosfera de sonho e inquietude que o fazia atravessar os dias como um
sonâmbulo, Erdosain chamara “a zona da angústia”.»
Os
acontecimentos complicavam-se… e ele, entretanto, quem era no meio daquelas
engrenagens que o iam cercando, adiantando-se cada vez mais na sua vida,
submergindo-o num lodaçal que o exasperava? Além disso, havia aquilo… a
incapacidade de pensar, de pensar através de um raciocínio de linhas nítidas,
como são as jogadas de xadrez e uma incoerência mental que o enfastiava contra
todos.
(…)
Tinha
agora a sensação de que a sua alma se tinha apartado para sempre de todo o
afecto terrestre. E a sua angústia era a de um homem que traz na sua
consciência uma jaula sinistra onde, entre espinhas de peixe, bocejam, tingidos
de sangue, elásticos tigres, afilando o olho para preparar o grande salto.
O livro está pejado de boutades geniais - como por exemplo, «Aquilo a que chamamos
loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros» -, impossível citar
todas. Mas o magma essencial localiza-se nas muitas vidas humilhadas e ofendidas
na sua aspiração mais vital. Todas as personagens falam de como esta vida não é
o que devia ser e de como podia e devia ser muito mais: «Porque razão a
felicidade humana ocupa tão pouco espaço?»
-
Deve ser triste.
-
Sim, é muito triste ver os outros felizes e ver que não compreendem que alguém
será um desgraçado toda a vida. Lembro-me de, à hora da sesta, entrar no meu
quarto e, em vez de tratar da roupa, pensar: Serei criada toda a vida? Já não
me cansava o trabalho, mas sim os meus pensamentos. Nunca reparou como são
obstinados, os pensamentos tristes?
(…)
-
Você teria coragem de se matar?
-
Não é o que você diz. Já não há coragem nem cobardia. Vem do fundo de mim a
sensação de que o suicídio é como ir arrancar um dente. Quando penso assim,
tudo em mim descansa. É certo que eu tinha pensado noutras viagens e noutras
paragens, noutra vida. Há algo em mim que deseja tudo o que é bonito e
delicado. Muitas vezes pensei que sim… suponhamos esses quinze mil pesos que
vou levantar amanhã… podia ir para as Filipinas… para o Equador… para recomeçar
a minha vida, casar-me com uma donzela milionária e delicada… estaríamos
deitados à hora da sesta em espreguiçadeiras debaixo de coqueiros, e os negros
oferecer-nos-iam laranjas descascadas. E eu olharia tristemente para o mar…
Sabe, esta certeza que diz que para onde quer que vá olharei tristemente para o
mar… esta certeza de que nunca mais serei feliz… no início enlouqueceu-me… e
agora resignei-me…
«Já não há coragem nem cobardia.» Apenas uma angústia estranhamente familiar. No final, nem crime nem castigo. Nenhuma redenção,
apenas simulacros. Ontem fui assistir a uma «homenagem» ao Vítor Silva
Tavares, que dizia que uma obra de arte para ser obra de arte tem de ter sobretudo
inferno. Pois aqui, sobeja.
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