Querida Albertine,
Como não te amar na tua insubmissão, na tua
liberdade livre ainda que manca?
Sigo-te no teu voo para lá de todos cárceres da alma e dos que nos querem sobrecarregar com o peso do seu amor. Ah, «acreditaste que me podias transplantar sentimentos, coser-me um pedaço do teu coração…». Aterras nove metros abaixo, no duro solo da liberdade. Partes o astrágalo e estás à mercê da bondade dos outros, tu que achas que tudo te é devido mas gostas de ser tu a servir-te.
«Quando a carcaça se liberta, o espírito, que até
então era a única escapatória, torna-se, pelo contrário, escravo dos mecanismos.
A humildade que fingíamos torna-se real.» A liberdade é árdua, pequena, tão cheia
de artimanhas e prisões agridoces. Mas tu és dura na queda, recusas
obstinadamente qualquer amarra ou gratidão. Só que desta vez a queda
desdobra-se em duas e encontras o mais doce dos embates: o Amor.
Acabar esta garrafa e este maço, o resto não importa. Recuperei a esperança.
(…)
Enrosco-me em torno da chama
estática que o álcool acendeu em mim, deixo o meu pé pendurado ao lado da roda,
e agarro-me, com os dois braços, aos ombros de Julien.
É o início de um novo século.
É
o início de um novo século: nem mais. A tua traquinice namora com as palavras,
acerta-lhes no âmago. «Eu tinha-me evadido na altura da Páscoa, e nada ressuscitava,
nada morria nem vivia.» A crueldade, tão essencial à tua sobrevivência,
encontra a ternura. Tens ciúmes do sono do teu homem, do homem que te fez
mulher, de corpo e coração.
Ele intimida-me como uma coisa
sagrada ou proibida. É ele, Anne, é o teu amor, mas ao mesmo tempo um desses
tipos que todas as manhãs saem da prisão ou que passam diante da porta do bar. Será
assim tão natural, tão necessário amar precisamente este» O que é, de onde
veio, essa coisa que passa e crepita do seu corpo para o meu?
Mas
tu não te conformas, não foste feita para esse papel de mulherzinha que espera.
Por isso, assim que podes andar, regressas à rua, à vida. Lá vais tu a andar,
cambaleante, pelas ruas de Paris, à caça de clientes, e eu fico a admirar-te a
ligeireza dos passos. Miúda, gosto do teu pensamento independente, do modo como
retribuis a indiferença a que alguns te votam. «Não por desprezo, mas porque
não sei forçar os ouvidos e os corações.»
Esta noite eu estava
particularmente quezilenta. Recusei comer nas toalhas de papel do restaurante,
disse que os lençóis estavam sujos e a água da torneira morna… Deitados, à distância
de dez centímetros um do outro, evitávamo-nos. Jean foge das minhas palavras e
eu das suas mãos. Ele gosta de mim e isso aborrece-me, pois só gosto da cama
dele. Mas quanto mais implico, mais ele se cala, mais ele se desdobra em
paciência e gentileza… E eu sinto-me envergonhada. Para arranjar coragem,
escorropicho a garrafa que, desde que venho aqui, continua esquecida em cima do
cosy obsessivamente limpo e arrumado, e decido ser simpática. De olhos
fechados, aceito Jean, reconheço a sua ternura e o seu saber, imagino a
felicidade que ele me deveria proporcionar e ao lado da qual passo, com uma
expressão compungida no rosto. Ai, Julien, Julien…
(…)
Sejamos putas e digamos: «Querido…»
O tipo aperta-me contra o seu peito magro e, com todo o seu sistema piloso
eriçado e o nariz fremente, diz que me ama, que não sou uma rameira como as
outras, que aquilo não é trabalho para mim e que ele fará tudo para me tirar
daquela vida.
(…)
Ontem Jean, hoje este gajo! Que
chatos que eles são com aqueles “amo-te”, como estão longe do amor!
Vai,
Albertine, anda! Cicatrizada, de andar manco, curada de tudo, excepto do amor…
2 comentários:
Não sei se leste, de qualquer forma, cá vai:) - http://omelhoramigo.blogspot.pt/2015/11/cadernos-do-subterraneo-xxxiv.html
Olá, Pedro. Por acaso, li o artigo que me envias. É uma homenagem tão bonita. E o DVP escreve magistralmente. Beijinhos
Enviar um comentário