Este aniversário, uns amigos ofereceram-me um bilhete para o
concerto da Patti Smith no Coliseu. Delirei com o presente e com o concerto.
Frente àquela figura andrógina, senti-me perante um xamã, que ora conduzia a
multidão ao êxtase, ora a tranquilizava.
O concerto causou-me uma impressão tão poética que decidi
que era hora de terminar a leitura de Just
Kids, tantas vezes começada e logo abandonada. Desta vez persisti e,
terminada a leitura, o que tenho a dizer contraria a opinião da maioria das
pessoas que leram o livro e com quem falei.
O início da narrativa é muito bom : “Quando era muito nova,
a minha mãe levava-me a passear ao longo da margem do rio Prairie, no parque
Humboldt (…). O rio estreitava antes de desaguar numa ampla lagoa e foi na
superfície desta que vi um milagre singular. Um longo pescoço encurvado
alçou-se de um traje de plumas brancas. Chapinhou na água luzidia, agitando as
suas grandes asas, e levantou voo rumo ao céu.
Cisne, disse-me a
minha mãe, ao dar-se conta da minha excitação.
Mas essa palavra, só por si, dificilmente atestava aquela magnificência
ou transmitia a emoção que ele me produzira. A visão dele gerara um ímpeto para
o qual eu não dispunha de palavras, um desejo de falar do cisne, de dizer algo
acerca da brancura dele, da natureza explosiva do seu movimento, e do lento
batimento das suas asas.”
O nível mantém-se ao longo da parte que conta a infância da
autora. Várias vezes, Patti afirma-se como uma bookish person: “O meu amor pela oração encontrou aos poucos um
rival no meu amor pelo livro (…). Fiquei completamente enamorada pelo livro. O
que queria era lê-los a todos, e as coisas sobre as quais lia causavam-me novas
ânsias”. Comigo também se passou de forma semelhante, embora o início do meu
amor pelos livros tenha coincidido com um profundo e feroz ateísmo, que só há
poucos anos começou a soçobrar.
No que diz respeito ao eixo principal do livro, a juventude
partilhada com Robert Mappelthorpe, a qualidade torna-se mais oscilatória.
Embora a história cative pela enorme lealdade dos dois artistas em gestação e
haja também o inegável interesse do testemunho de alguém que viveu tão por
dentro a cena artística de Nova Iorque em finais dos anos 60 e início dos 70, senti
muitas vezes que algumas partes enumeravam apenas o que Robert e Patti iam
fazendo e como iam sobrevivendo à fome e à descrença. Ou seja, senti que lhe
faltava angústia e que isso acontecia de modo propositado. Pode-se argumentar
que a beleza do livro reside precisamente nessa visão cândida que Patti parece
nunca perder e que, de facto, pressenti nela no concerto do Coliseu. Também eu
prezo muito a inocência (embora esta tenha mil artimanhas, como diria o
Herberto Hélder) mas literariamente falando, isso não me basta.
O que não impede que eu continue a gostar da Patti. Lerei
com certeza o M Train. Talvez aí se
desnudem as angústias que aqui senti subtraídas.
Sem comentários:
Enviar um comentário