domingo, 17 de janeiro de 2016

just a good book




Este aniversário, uns amigos ofereceram-me um bilhete para o concerto da Patti Smith no Coliseu. Delirei com o presente e com o concerto. Frente àquela figura andrógina, senti-me perante um xamã, que ora conduzia a multidão ao êxtase, ora a tranquilizava.

O concerto causou-me uma impressão tão poética que decidi que era hora de terminar a leitura de Just Kids, tantas vezes começada e logo abandonada. Desta vez persisti e, terminada a leitura, o que tenho a dizer contraria a opinião da maioria das pessoas que leram o livro e com quem falei.

O início da narrativa é muito bom : “Quando era muito nova, a minha mãe levava-me a passear ao longo da margem do rio Prairie, no parque Humboldt (…). O rio estreitava antes de desaguar numa ampla lagoa e foi na superfície desta que vi um milagre singular. Um longo pescoço encurvado alçou-se de um traje de plumas brancas. Chapinhou na água luzidia, agitando as suas grandes asas, e levantou voo rumo ao céu.
Cisne, disse-me a minha mãe, ao dar-se conta da minha excitação.
Mas essa palavra, só por si, dificilmente atestava aquela magnificência ou transmitia a emoção que ele me produzira. A visão dele gerara um ímpeto para o qual eu não dispunha de palavras, um desejo de falar do cisne, de dizer algo acerca da brancura dele, da natureza explosiva do seu movimento, e do lento batimento das suas asas.”

O nível mantém-se ao longo da parte que conta a infância da autora. Várias vezes, Patti afirma-se como uma bookish person: “O meu amor pela oração encontrou aos poucos um rival no meu amor pelo livro (…). Fiquei completamente enamorada pelo livro. O que queria era lê-los a todos, e as coisas sobre as quais lia causavam-me novas ânsias”. Comigo também se passou de forma semelhante, embora o início do meu amor pelos livros tenha coincidido com um profundo e feroz ateísmo, que só há poucos anos começou a soçobrar.

No que diz respeito ao eixo principal do livro, a juventude partilhada com Robert Mappelthorpe, a qualidade torna-se mais oscilatória. Embora a história cative pela enorme lealdade dos dois artistas em gestação e haja também o inegável interesse do testemunho de alguém que viveu tão por dentro a cena artística de Nova Iorque em finais dos anos 60 e início dos 70, senti muitas vezes que algumas partes enumeravam apenas o que Robert e Patti iam fazendo e como iam sobrevivendo à fome e à descrença. Ou seja, senti que lhe faltava angústia e que isso acontecia de modo propositado. Pode-se argumentar que a beleza do livro reside precisamente nessa visão cândida que Patti parece nunca perder e que, de facto, pressenti nela no concerto do Coliseu. Também eu prezo muito a inocência (embora esta tenha mil artimanhas, como diria o Herberto Hélder) mas literariamente falando, isso não me basta.


O que não impede que eu continue a gostar da Patti. Lerei com certeza o M Train. Talvez aí se desnudem as angústias que aqui senti subtraídas.

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