Um exercício incrível de imaginação que nos maravilha e inquieta a cada instante: «como é possível que esta história tenha sido imaginado por uma mente, uma mente apenas?».
Concluímos no final da leitura, algo extenuadas pelo ritmo eufórico e diálogo irónico permanente que, embora o livro tenha sido escrito por uma pessoa apenas, essa pessoa era habitada por várias. Uma pessoa, afinal, como as outras, mas com um ouvido extremamente amplificado para sintonizar a multiplicidade de vozes que constitui um Eu.
A desgraça final da autora terá vindo daí, dessa antena apuradíssima que lhe permitia amplificar cada voz, até à loucura. A beleza das suas obras também: veio desse esforço sobre-humano para domar as vozes e integrá-las numa voz, evitando constantemente o colapso. Colocar em palco, no papel, todas as personagens que nos fazem e desfazem.
E é isto que Orlando é, muitas coisas: uma biografia, uma ficção histórica, exorcismo de demónios, crítica feminista, testamento de uma ambição, uma obra desumana e genial e, ainda «a maior carta de amor da literatura», como um crítico feliz disse. De Virginia para Vita. Mas sobretudo, de Virginia para Virginia.
“«O quê, então? Quem?», dizia. «Trinta e seis anos; ao volante de um automóvel; mulher. Sim, mas também um milhão de outras coisas mais. Uma snobe – será que o sou? A jarreteira, no salão? Os leopardos? Os meus antepassados? Se tenho orgulho neles? Tenho, pois! Ávida, sensual, viciosa? Serei mesmo? (aqui entrou em cena um novo eu). Não me importo nada de o ser. Honesta? Julgo que sim. Generosa? Ora isso não conta (aqui entrou em cena um novo eu). Deitada na cama a manhã inteira, entre belos lençóis de linho, a ouvir os pombos; baixela de prata; vinho; criadas; lacaios. Mimada? Talvez. Demasiadas coisas que não servem para nada. Daí os meus livros (aqui citou cinquenta títulos clássicos; aludindo, julgamos nós, às românticas obras de juventude que destruíra). Fluente, desenvolta, romântica. Mas (aqui entrou em cena um novo eu) também uma inepta, uma trapalhona. Mais desastrada que eu não há. E … e … (aqui hesitou, procurando uma palavra, e ao sugerir «Amor» talvez nos enganemos, mas o certo é que ela riu, corou e exclamou depois…) Um sapo cravejado de esmeraldas! O Arquiduque Harry! Varejeiras no tecto! (aqui entrou em cena um novo eu). Então e Nell, Kit, Sasha? (mergulhou nas mais profunda tristeza: algumas lágrimas chegaram mesmo a tomar forma, e havia muito que ela deixara de chorar). Árvores, disse ela. (Aqui entrou em cena um novo eu.) Adoro árvores (ia a passar por um maciço delas), ali a crescer há mais de mil anos. E estábulos (passou por um estábulo em ruínas, à beira da estrada). E cães-pastores (lá vinha um a atravessar a estrada. Orlando desviou-se cautelosamente. E a noite. Mas as pessoas… (aqui entrou em cena um novo eu). As pessoas? (repetiu, sob a forma de uma pergunta.) Não sei. Tagarelas, invejosas, sempre a dizerem mentiras.
(…)
«Assombrada!», exclamou, carregando bruscamente no acelerador. «Assombrada, sim, desde criança. Lá vai o ganso selvagem. Passa diante da janela, voa em direcção ao mar. E eu corri (agarrou-se com mais força ao volante), estiquei-me para o agarrar. Mas o ganso voa demasiado depressa. Tornei a vê-lo, aqui – além – acolá -, Inglaterra, Pérsia, Itália. Sempre a voar muito depressa, em direcção ao mar, e eu sempre a persegui-lo com palavras como redes (aqui estendeu a mão para fora da janela) que mirram como vi mirrarem as redes içadas para o convés, trazendo dentro apenas algas; e às vezes vem um pedacinho de prata – meia dúzia de palavras – no fundo da rede. Mas nunca o grande peixe que mora nas florestas de coral.» Aqui, inclinou a cabeça, em profunda meditação.
E foi nesse instante, em que parara de chamar «Orlando» e estava absorta a pensar noutra coisa, que a Orlando por quem chamara veio de livre vontade; como se prova pela mudança que agora se operava nela (acabava de entrar no parque, transpondo o portão de entrada).
(…)
Estava agora, portanto, obscura e sossegada, tendo-se tornado, com a adição desta Orlando, aquilo a que com razão ou sem ela se chama um eu único, um verdadeiro eu. E calou-se. Porque é provável que quando uma pessoa fala em voz alta, os eus (que podem ser mais de dois mil) se apercebam da discórdia, e tentem comunicar, mas quando a comunicação se estabelece, calam-se.”
Bebíamos água com sumo de limão de um púcaro enorme e era a água mais saciante de sempre, quando ela me disse, com o sotaque austríaco dela que eu era no mínimo três pessoas. A conduzir um carro.
- «Vais a conduzir e vais relaxada, a ouvir música, a fumar, a rir e a conversar com o outro eu que vai sentado no lugar do morto. De repente, há algo que te perturba e ficas destruída, incapaz de continuar a conduzir o carro. E de imediato, numa acrobacia, sem parar o carro, o outro eu que está ao lado, toma o controlo do volante e começa a conduzir de forma agressiva, dizendo blasfémias à janela. Um eu niilista que quer que tudo se lixe. No banco detrás, há outro eu que fica em pânico com essa acrobacia de condutores, que tem medo que o carro se descontrole. E o mais natural seria que encostasses o carro para que os condutores pudessem trocar sem perigo.»
- «Talvez. Mas o carro não pode parar. Tem de continuar.»
- «É esse o problema. Não consegues admitir que a paragem. És conduzida por um carro».
Em silêncio, enrosquei-me em mim com um sorriso frágil e puxei o cobertor para mim.
- «Vês, agora que te disse isto, ficaste quieta e triste. É verdade. O teu eu mais verdadeiro é esse. O do banco de trás»
- «Não. Fiquei a pensar. Não fiquei triste. Acho bonito. Belo de certa forma.»
- «Há outro eu, então. Um que vai aninhado junto à janela, no banco detrás, indiferente às acrobacias do carro e dos condutores. Vai a olhar a paisagem e a escrever secretamente poemas na sua mente. Esse é o teu eu menos contaminado.»
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