domingo, 29 de abril de 2012
sábado, 28 de abril de 2012
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Crime e Tédio
Nas primeiras páginas
do romance narrado na primeira pessoa, sob o artifício de diário, o anti-herói
(ou melhor, o herói sem evento, como se verá) passeia pela cidade e
apresenta-se formalmente: “Eu, Tyko
Gabriel Glas, médico diplomado, que, algumas vezes, ajudo os outros, mas nunca
pude ajudar-me a mim mesmo, e que, com trinta anos feitos, nunca me aproximei
de uma mulher.”
Glas é um esteta; sabe
todas as suas ideias e sonhos assentam em impressões extraídas da literatura e
da arte e que não tem olhos próprios: é o olhar que o espelho devolve quando os
deuses se calam e os fantasmas reinam, “uma
sombra que queria tornar-se um homem”, como no conto de Andersen. Um burguês
com a solidão e o tempo necessários ao pensamento, que prefere o sonho do amor
à história de amor que se desfaz na manhã seguinte em flores murchas e
porcaria, cativado apenas por mulheres enamoradas, oleadas por outros, mulheres
que ele não tenha de foder, que não o vejam dormir e que ele não veja na manhã
seguinte. “Não, não há sonho de
felicidade que não morda a sua própria cauda.” Os affaires da carne são para ele a grande obscenidade e o seu
ateísmo começa pela descoberta (teórica) do sexo.
Editado na Suécia em
1905, o romance causou escândalo pelas ideias inovadoras de Glas sobre o aborto
e a eutanásia. “A vida humana pulula por
toda a parte. E as vidas humanas distantes, invisíveis e desconhecidas, pouco
importam seja a quem for, com a possível excepção de meia dúzia de filantropos
cuja estupidez está muito acima da média.” Glas não partilha estas ideias
com ninguém, porque a partilha de si é-lhe promíscua e porque não está disposto
a arriscar a sua pele e abdicar do seu conforto. E nisto, a personagem do
médico é absolutamente coerente: um homem desligado da humanidade não deseja
nada, muito menos alumiar caminho para outros. Conhecendo intimamente que
ninguém é culpado, rejeita apenas intelectualmente as ladainhas do dever e da
moral que repete. “Nunca senti tão
intensamente que a moral não passa de um carrossel que não pára de girar.
Sabia-o desde há já alguns anos, mas sempre pensara que as voltas do carrossel
se contavam por séculos ou por eras, e agora a minha impressão era que se contavam,
afinal, por minutos ou segundos. Dir-se-ia que explodiam centelhas diante dos
meus olhos.”
E talvez se ele fosse
ainda capaz de se comprometer nessa ou noutra batalha qualquer, a sua sede de
acção se pudesse apaziguar. Também a ele a lua da adolescência prometeu “uma felicidade ímpia ou uma infelicidade que
valia mais do que todas as felicidades da terra, qualquer coisa de calcinante,
de voluptuoso, e grande”.
Glas mata mas falha o
acontecimento que devia curar a sua bulimia temporal. Consegue iludir os remorsos,
reconhece que o mundo arde e aceita a injustiça inerente à vida, interrompendo a
deriva do pensamento e colando-se à sua pele. Como todos os pensadores, ele
busca a verdade e quase se perde a si mesmo, mas tem a delicadeza de se dissimular
na mansidão do gado, refreando as suas ideias através de um mandamento de quem
arrepia caminho para conservar a dignidades das entranhas e do estômago: “A porção de verdade que te é útil é-te dada
gratuitamente, e chega-te misturada com o erro e a mentira, mas é para teu bem,
uma vez que, em estado puro te queimaria as entranhas. Não tentes purgar a alma
de mentiras, porque, com elas, irão muitas outras coisas em que não pensaste, e
ficarás vazio de ti mesmo, e de tudo o que tem valor para ti. «Não
perguntarás.»”
O Doutor Glas espera mas
a acção nunca lhe acontece e a vida passa-lhe ao lado, sem amor que a redima. Sai
também ele derrotado, desta feita não pela culpa mas pelo tédio moderno que a todos
contamina. “A chuva cai no parapeito da
janela. Sinto que me cai no coração e abre nele um buraco. Há qualquer coisa
que não funciona no meu cérebro. Não sei se o tenho melhor ou pior do que o
normal, mas o certo é que não tenho como convém tê-lo.”
E a vida continua de treva
em treva. Glas não a entende ou finge não compreender, pois num parágrafo simples
ele consegue resumir a razão de tanto sofrimento e tanta miséria, para tão
pouco prazer: “Queremos ser amados; à
falta de amor, queremos ser admirados; à falta de admiração, ser temidos; à
falta de sermos temidos, odiados e desprezados. Queremos suscitar nos outros
esta ou aquela espécie de sentimento. A alma tem horror ao vazio, e quer a todo
o custo manter os seus contactos.”
Por cumprir resta a sua
profecia: “Terá de chegar, e chegará, um
dia em que o direito a morrer seja considerado muito mais importante e
inalienável do que o direito de introduzir um boletim numa urna eleitoral. E
quando os tempos estiverem maduros para esse dia, todo o doente incurável – e
igualmente todo o «criminoso» - terá direito à assistência do médico, caso
deseje a libertação.” Ainda não chegou esse dia. Ainda não somos suficientemente
modernos. O espectro de Deus ainda nos assombra.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
o medo...
“O verdadeiro medo (e até
os homens mais intrépidos o podem ter) é algo espantoso, uma sensação atroz, como
uma decomposição da alma, um espasmo horroroso do pensamento e do coração, cuja
mera recordação provoca estremecimentos de angústia. Mas quando se é corajoso, isto
não acontece nem perante um ataque, nem perante a morte inevitável, nem perante
qualquer das formas conhecidas de perigo: acontece em certas circunstâncias anormais,
sob certas influências misteriosas, face a ameaças vagas.”
Guy de MAUPASSANT
terça-feira, 24 de abril de 2012
segunda-feira, 23 de abril de 2012
"It is preferable not to travel with a dead man."
Every night and every morn,
Some to misery are born,
Every morn and every night,
Some are born to sweet delight.
Some are born to sweet delight,
Some are born to endless night.
William Blake
domingo, 22 de abril de 2012
...most of us need the eggs
Alvy Singer: It was great seeing Annie again and I realized what a terrific person she was and how much fun it was just knowing her and I thought of that old joke, you know, the, this, this guy goes to a psychiatrist and says, 'Doc, uh, my brother's crazy, he thinks he's a chicken,' and uh, the doctor says, 'well why don't you turn him in?' And the guy says, 'I would, but I need the eggs.' Well, I guess that's pretty much now how I feel about relationships. You know, they're totally irrational and crazy and absurd and, but uh, I guess we keep going through it...because...most of us need the eggs.
quinta-feira, 19 de abril de 2012
O exorcismo é o verdadeiro poema do prisioneiro
“É preciso estarmos sempre de pé atrás, Meus Senhores, sempre com pressa de acabar, jurar tal coisa e voltar a por todos os dias essa jura em obra, não nos permitirmos por mero prazer uma única respiraçãozinha, utilizar todas as pancadas do coração naquilo que fazemos, pois aquela que tenha sido empregue só por divertimento irá por em desordem as milhares de outras que se seguem.
(…)
Mas que isso acabe depressa. Digo-o para vosso bem, um iluminado não pode durar muito tempo. Um iluminado come o seu próprio tutano, e a satisfação não é o que vos interessa. Vocês verão aliás como isso acabará. Os sons voltarão a entrar no órgão e o futuro há-de invaginar-se no Passado como sempre fez.”
“Para compreender, a inteligência tem de se sujar. Antes de tudo, antes até de se sujar tem de ser ferida.”
A noite em que o servo comeu a senhora...
JÚLIA: Tenho melhor opinião acerca das pessoas do que você. Vamos experimentar. Vamos lá.
Olha-o fixamente nos olhos.
Olha-o fixamente nos olhos.
JOÃO: É uma pessoa muito estranha, sabe.
JÚLIA: Talvez seja, mas você também é. E, vendo bem, tudo é estranho: a vida, os seres humanos, tudo. Tudo é um lixo que cai sobre a superfície da água, até mergulhar, mais fundo, mais fundo. Há um sonho que eu tenho muitas vezes. Eu estou em cima de uma coluna e não sei como descer. Quando olho para baixo sinto tonturas; tendo de descer, mas tenho medo de saltar. Não posso ali estar, sinto que vou cair, mas não caio. Não há uma pausa. Não haverá paz para mim até eu descer e chegar ao chão. Mas ao tocar o chão, eu quero mesmo é ficar debaixo do chão… Alguma vez sentiu isto?
JÚLIA: Talvez seja, mas você também é. E, vendo bem, tudo é estranho: a vida, os seres humanos, tudo. Tudo é um lixo que cai sobre a superfície da água, até mergulhar, mais fundo, mais fundo. Há um sonho que eu tenho muitas vezes. Eu estou em cima de uma coluna e não sei como descer. Quando olho para baixo sinto tonturas; tendo de descer, mas tenho medo de saltar. Não posso ali estar, sinto que vou cair, mas não caio. Não há uma pausa. Não haverá paz para mim até eu descer e chegar ao chão. Mas ao tocar o chão, eu quero mesmo é ficar debaixo do chão… Alguma vez sentiu isto?
(...)
O coro aproxima-se a cantar.
O CORO
Se até bates nas
cadelas
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Quando estão a acasalar
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Deixa as outras com o seu
par
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Não lhes roubes o que é
delas
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Trazes debaixo da saia
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
O que tens para lhe dar
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Porque de véu e grinalda
Tridiridi-rala, tridiridi-ra
Terás muito para contar
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
E vê lá que te não caia
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Em sorte alguma desdita
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
Para a sorte ser bonita
Tridiridi-rala, tridiridi-ra
Basta levantares a saia
Tridiridi-rala,
tridiridi-ra
“Mas antes de mais, não há mal absoluto. A ruína de uma raça fará a felicidade de outra que se elevará, e as alternâncias entre ascensão e queda são um dos principais ingredientes da vida, já que a felicidade depende de uma comparação. Quanto ao homem apaixonado por programas e por reforma, ao homem que queira evitar que a ave de rapina como a pomba, e o piolho a ave de rapina, far-lhe-ei esta pergunta: porquê dar remédio a isso? A vida não é assim tão matematicamente louca que só os grandes comam os pequenos; acontece frequentes vezes também a abelha comer o leão, ou pelo menos enlouquecê-lo.”
segunda-feira, 16 de abril de 2012
domingo, 15 de abril de 2012
Noites brancas com o mestre Visconti
Natalia: Agora posso dizer que fui dançar.
Mario: Agora posso dizer que fui feliz.
segunda-feira, 9 de abril de 2012
Onde está, partido, o que recebi?
“O quarto ameaçado torna-se a ouvir, e eu vejo que o relâmpago de «escrevo, mas não sou escravo», se dirige, sozinho, para a secretária do escritório, e derruba todos os inúteis auxiliares da escrita – mata-borrão, tinteiro, bloco, jarra convencional, borracha de tinta. (…) Quem está à secretária pergunta-lhe: - Onde ficou o que eu dei?
em que almofada, ou objec-
to da sala?
E ela responde-lhe; com um novo sorriso, ou esgar de choro: - Onde está, partido, o que recebi?
Eu vi, veloz, que alguém, ou alguma coisa, ou alguma hesitação sobre o absoluto, precisava de nascer_______ de nascer deles. Voltei para trás, à fonte do silêncio e _______ senti que ia ser profundamente amada, e mal.
Ele interrogou – Queres ser superficialmente bem amada
ou
mal amada, mas profundamente?
«Amada profundamente mal, amada profundamente, e sem saber», traçou o pé do lápis na ombreira da porta.”
em que almofada, ou objec-
to da sala?
E ela responde-lhe; com um novo sorriso, ou esgar de choro: - Onde está, partido, o que recebi?
Eu vi, veloz, que alguém, ou alguma coisa, ou alguma hesitação sobre o absoluto, precisava de nascer_______ de nascer deles. Voltei para trás, à fonte do silêncio e _______ senti que ia ser profundamente amada, e mal.
Ele interrogou – Queres ser superficialmente bem amada
ou
mal amada, mas profundamente?
«Amada profundamente mal, amada profundamente, e sem saber», traçou o pé do lápis na ombreira da porta.”
domingo, 8 de abril de 2012
PARA A SEREIA DO NEVOEIRO
Boca no espelho escondido,
joelho diante da coluna do orgulho,
mão com a barra da grade:
ofertai-vos as trevas,
dizei o meu nome,
guiai-me até elas.
DO AZUL, que ainda busca o seu olho, bebo eu em primeiro lugar.
Da marca do teu pé bebo eu e vejo:
rolas-me entre os dedos, pérola, e cresces!
Cresces como todos os que foram esquecidos.
Rolas: o granizo preto da melancolia
cai num lenço, todo branco de dizer adeus.
QUEM ARRANCA de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.
Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas
e falar de ti e de mim.
joelho diante da coluna do orgulho,
mão com a barra da grade:
ofertai-vos as trevas,
dizei o meu nome,
guiai-me até elas.
DO AZUL, que ainda busca o seu olho, bebo eu em primeiro lugar.
Da marca do teu pé bebo eu e vejo:
rolas-me entre os dedos, pérola, e cresces!
Cresces como todos os que foram esquecidos.
Rolas: o granizo preto da melancolia
cai num lenço, todo branco de dizer adeus.
QUEM ARRANCA de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.
Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas
e falar de ti e de mim.
Paul Celan
sábado, 7 de abril de 2012
um falcão no punho
A escrita de Maria Gabriela Llansol enfeitiçou-me. Nela encontro a mesma constelação onde os corpos dos livros se entrelaçam com o desejo, o erotismo e a falta.
“A fase constante de não querer senão olhar com atenção, e ler, passar dias e dias a interrogar os livros (…), enfim, fazer falar com o tempo quem é menos mudo, e alcançar uma coisa que se deseja (…).
Confronto estes dias com o período final da minha adolescência em que sofria de uma doença ligeira de fadiga. Vinda do liceu, ou já em férias, só me restavam forças para, na imobilidade, ler, acrescentando-lhes o gozo ilícito do meu próprio corpo. Sob o signo da falta, eu gozava e lia e, agitando-me, sem violência, nesta contradição fundava a escrita.”
Confronto estes dias com o período final da minha adolescência em que sofria de uma doença ligeira de fadiga. Vinda do liceu, ou já em férias, só me restavam forças para, na imobilidade, ler, acrescentando-lhes o gozo ilícito do meu próprio corpo. Sob o signo da falta, eu gozava e lia e, agitando-me, sem violência, nesta contradição fundava a escrita.”
Tenho vinte e nove e sinto-me muito mais velha. Tenho vivido muito, tenho sido muito feliz e muito triste e sei que eu não podia ser de outra forma. Fui uma criança demasiado séria e forte, cresci no campo, no meio de uma guerra, aconchegada pela comunhão dos irmãos, dos cães e dos livros. A adolescência foi dedicada ao riso. Depois, mudei-me para Lisboa, descobri o amor como guerra, depois como faca e, esporádica e brevemente como réstia de ouro. Fui amada e amei mas a inquietação não me deixava sossegar. Era preciso tudo questionar, ir até aos limites para ver se a ideia de liberdade não era uma quimera. Parti, fui viver fora. Fui feliz, fui triste. Regressei cansada. A guerra com os outros tinha terminado. Perdi a esperança, conheci o sentimento de impossível. Entendi que a liberdade existe, é queda livre sem fim. Quebrei. Tive medo, muito medo. E descobri a solidão. E no medo, aprendi a pedir e a receber: a minha maior lição de humildade. E que o grande mistério é não haver mistério nenhum e andarmos todos ligados. Continuo a ter medo mas sinto-me cada vez mais perto de mim e os livros são os amantes a que sempre retorno e onde mais me encontro em Casa.
“o sentimento mais agudo que experimentei, e que me aperta ainda muitas vezes é o de não ter para onde ir, de ter sido cercada pelo desejo de mover-me sem fim; lembro-me que, no tempo em que crescia (…), chamava a mim mesma «a corça prisioneira»; eis a verdadeira natureza do meu espírito. Sou um peso vasto para quem tenha a bondade de fazer-me companhia e, se adquiri e conservei o conhecimento da arte de escrever foi por necessidade, tendo descoberto que a escrita e o medo são incompatíveis.”
Vou agora dedicar-me a aprender a estimar a minha loucura sem me assustar. É só isso que me falta e é tarefa que só a escrita, o grande exercício da Falta, pode cumprir, cumprindo-me. “Escrever não é um protesto de inocência?”
segunda-feira, 2 de abril de 2012
A morte de Danton
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