Nas primeiras páginas
do romance narrado na primeira pessoa, sob o artifício de diário, o anti-herói
(ou melhor, o herói sem evento, como se verá) passeia pela cidade e
apresenta-se formalmente: “Eu, Tyko
Gabriel Glas, médico diplomado, que, algumas vezes, ajudo os outros, mas nunca
pude ajudar-me a mim mesmo, e que, com trinta anos feitos, nunca me aproximei
de uma mulher.”
Glas é um esteta; sabe
todas as suas ideias e sonhos assentam em impressões extraídas da literatura e
da arte e que não tem olhos próprios: é o olhar que o espelho devolve quando os
deuses se calam e os fantasmas reinam, “uma
sombra que queria tornar-se um homem”, como no conto de Andersen. Um burguês
com a solidão e o tempo necessários ao pensamento, que prefere o sonho do amor
à história de amor que se desfaz na manhã seguinte em flores murchas e
porcaria, cativado apenas por mulheres enamoradas, oleadas por outros, mulheres
que ele não tenha de foder, que não o vejam dormir e que ele não veja na manhã
seguinte. “Não, não há sonho de
felicidade que não morda a sua própria cauda.” Os affaires da carne são para ele a grande obscenidade e o seu
ateísmo começa pela descoberta (teórica) do sexo.
Editado na Suécia em
1905, o romance causou escândalo pelas ideias inovadoras de Glas sobre o aborto
e a eutanásia. “A vida humana pulula por
toda a parte. E as vidas humanas distantes, invisíveis e desconhecidas, pouco
importam seja a quem for, com a possível excepção de meia dúzia de filantropos
cuja estupidez está muito acima da média.” Glas não partilha estas ideias
com ninguém, porque a partilha de si é-lhe promíscua e porque não está disposto
a arriscar a sua pele e abdicar do seu conforto. E nisto, a personagem do
médico é absolutamente coerente: um homem desligado da humanidade não deseja
nada, muito menos alumiar caminho para outros. Conhecendo intimamente que
ninguém é culpado, rejeita apenas intelectualmente as ladainhas do dever e da
moral que repete. “Nunca senti tão
intensamente que a moral não passa de um carrossel que não pára de girar.
Sabia-o desde há já alguns anos, mas sempre pensara que as voltas do carrossel
se contavam por séculos ou por eras, e agora a minha impressão era que se contavam,
afinal, por minutos ou segundos. Dir-se-ia que explodiam centelhas diante dos
meus olhos.”
E talvez se ele fosse
ainda capaz de se comprometer nessa ou noutra batalha qualquer, a sua sede de
acção se pudesse apaziguar. Também a ele a lua da adolescência prometeu “uma felicidade ímpia ou uma infelicidade que
valia mais do que todas as felicidades da terra, qualquer coisa de calcinante,
de voluptuoso, e grande”.
Glas mata mas falha o
acontecimento que devia curar a sua bulimia temporal. Consegue iludir os remorsos,
reconhece que o mundo arde e aceita a injustiça inerente à vida, interrompendo a
deriva do pensamento e colando-se à sua pele. Como todos os pensadores, ele
busca a verdade e quase se perde a si mesmo, mas tem a delicadeza de se dissimular
na mansidão do gado, refreando as suas ideias através de um mandamento de quem
arrepia caminho para conservar a dignidades das entranhas e do estômago: “A porção de verdade que te é útil é-te dada
gratuitamente, e chega-te misturada com o erro e a mentira, mas é para teu bem,
uma vez que, em estado puro te queimaria as entranhas. Não tentes purgar a alma
de mentiras, porque, com elas, irão muitas outras coisas em que não pensaste, e
ficarás vazio de ti mesmo, e de tudo o que tem valor para ti. «Não
perguntarás.»”
O Doutor Glas espera mas
a acção nunca lhe acontece e a vida passa-lhe ao lado, sem amor que a redima. Sai
também ele derrotado, desta feita não pela culpa mas pelo tédio moderno que a todos
contamina. “A chuva cai no parapeito da
janela. Sinto que me cai no coração e abre nele um buraco. Há qualquer coisa
que não funciona no meu cérebro. Não sei se o tenho melhor ou pior do que o
normal, mas o certo é que não tenho como convém tê-lo.”
E a vida continua de treva
em treva. Glas não a entende ou finge não compreender, pois num parágrafo simples
ele consegue resumir a razão de tanto sofrimento e tanta miséria, para tão
pouco prazer: “Queremos ser amados; à
falta de amor, queremos ser admirados; à falta de admiração, ser temidos; à
falta de sermos temidos, odiados e desprezados. Queremos suscitar nos outros
esta ou aquela espécie de sentimento. A alma tem horror ao vazio, e quer a todo
o custo manter os seus contactos.”
Por cumprir resta a sua
profecia: “Terá de chegar, e chegará, um
dia em que o direito a morrer seja considerado muito mais importante e
inalienável do que o direito de introduzir um boletim numa urna eleitoral. E
quando os tempos estiverem maduros para esse dia, todo o doente incurável – e
igualmente todo o «criminoso» - terá direito à assistência do médico, caso
deseje a libertação.” Ainda não chegou esse dia. Ainda não somos suficientemente
modernos. O espectro de Deus ainda nos assombra.
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