Acredito na existência da alma. Acredito
porque já senti a minha a querer partir-me o peito algumas vezes. É uma alma
curiosa e inquieta e não aceita confinar-se a nada, recusa convenções e
devoções e nem sempre obedece aos meus desígnios.
As vantagens e as despesas de
uma alma deste tipo são conhecidas. O bem e o mal coincidem no mesmo ponto, a
imaginação empática. Gosta-se demasiado de visitar e imaginar toda e qualquer
alteridade, pois o que interessa é abarcar a vida nas suas múltiplas
manifestações e contradições.
Uma vez ofereceram-me um
workshop de Reiki. Acontecia a um sábado e, apesar da generosidade da oferta, o
corpo clamava por praia. Após uma longa hesitação, acabei por me levantar bem
cedo e ir ao workshop, de algum modo convencida que se não abdicasse de um dia
de Verão, a minha alma estaria condenada a um materialismo opressivo. Aguentei
a manhã e a tarde no workshop, contrariando ora a minha vontade de fugir, ora o
riso convulsivo.
No entanto, o reiki acabou por
me oferecer duas epifanias. A primeira aconteceu durante o workshop. Todas as
mulheres que frequentavam o mesmo, à excepção de mim, tinham alguma doença
complicada. Uma deles ficou indignada, quando um dos mestres lhe deu a ler o
significado espiritual da síndrome de Crohn: parece que só acontece aos
lambe-cus. E foi então que a certo momento, eu vi, eu soube: as quatro mulheres
que ali estavam, tinham trocado o sol e os pés descalços sobre a areia, porque
estavam perdidas e precisavam desesperadamente de um sentido para a vida. Eu
inclusive.
A segunda aconteceu no dia
seguinte ao workshop. Depois de iniciada ao reiki, há que meditar uma hora
durante 30 dias. Nunca consegui meditar mas como as mãos aqueciam realmente,
decidi tentar. Pus o CD com os sininhos e comecei os exercícios sentada na
cadeira. Quinze minutos depois estava deitada na cama a aldrabar todos os
exercícios e fui forçada a ser sincera comigo. Admiti que não conseguia
meditar, que o reiki fazia muito bem a muita gente mas a mim só me tirava os
pés do chão para a cama e que durante o tempo que ali estivera, não conseguira
esvaziar a mente pelo constante lamento de estar a desperdiçar tempo que podia gastar
a ler. Senti-me muito mais leve depois disto e aproveitei a vela para alumiar a
leitura dessa noite e meditar nos pensamentos e acções das personagens que
então me ocupavam.
Este sábado fui para a Malveira
da Serra. Perto do Cabo da Roca, acontecia uma “festa esotérica”, segundo uns
amigos. Como não me apeteciam as calçadas lisboetas, fui. Numa “casa encantada”
discutia-se a espiritualidade e o futuro da humanidade, noutras divisões
faziam-se massagens e leituras de tarot, mas os caminhos húmidos da serra
distraíam-me. Gosto dos caminhos misteriosos da serra, da humidade que os
protege, do silêncio dos meus passos.
Houve depois uma aula conjunta
de chi kuan, que comecei a fazer mas rapidamente me aborreci, pois que me
apetecia fumar e aproveitar uma cadeira perfeita para olhar o mar. Gosto de
estar deitada sem fazer nada, fumando o tempo. Gosto de deitar os meus olhos no
mar.
Despertei desta contemplação,
sentindo uma presença a meu lado. Uma galinha, de olho verde-inquieto
aproximara-se, decidida a estabelecer conexão comigo. Olhou-me nos olhos,
meneando a cabeça como um ponto de interrogação até se fartar e partir. Fiquei
depois observando as peripécias das três galinhas que ali viviam, encantada com
os seus movimentos oscilantes e as excitações que as moviam. Concluí que as galinhas,
apesar de estúpidas, nunca se entendiam e que é impossível não nos divertirmos
com os seus voos arcaicos.
A caminho de Lisboa, encontramos
uma tasca na aldeia de Juso. Escolhi certeiramente o sítio pelo toldo e pelo
nome. Lá dentro, tive a oportunidade de conversar com alguns sorrisos enrugados,
descobrir que também existe bom medronho no centro e provar tordos pela
primeira vez. Gosto de tascas perdidas no tempo e no espaço e a minha intuição
não costuma falhar quando se trata de encontrar uma. Lá dentro, encontro sempre
uma pureza que nunca consegui traduzir em palavras. Uma deficiência que
felizmente consegui suplementar com a leitura das aventuras do Augie March: “primeiro tem de se testar aquilo de humano com
que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e
abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de
Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a
imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus
olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer
em qualquer lugar”.
Regressada
a Lisboa, a noite alongou-se até desembocar na madrugada suja do Tejo. Gosto das
manhãs fantasmáticas que descolam do rio com uma imponência demorada. Gosto dos
fantasmas que se abeiram do rio, das mãos sujas que mendigam cigarros e dos
olhares vítreos dos peixes que se extraviam da água para um balde triste. Gosto
dos barcos que assombram o horizonte e dos cacilheiros que cortam a paz morta
das águas. E do céu de Lisboa que nem William Turner conseguiria reproduzir.
Regressei
a casa de eléctrico, já a manhã ia alta e embriagada. Com um casal de
franceses, descobri que as pessoas que lêem muito ficam com papos nos olhos
quando envelhecem. Como se as letras inchassem debaixo de olhos que não souberam
olhar o mundo sem o ler. Ao despedir-me deles, riam muito, contentes por saber
que Madame Bovary sobrevivia afinal alegre em Lisboa.
Deitei-me
por fim com mais uma epifania: tenho uma alma pequena com uma vontade imensa de
andar por aí, simultaneamente meditabunda e alegre. Misteriosos são os caminhos
de uma alma que se sente atraída por tudo o que vive e se agita, quer se trate
de galináceos, águas ou tascas perdidas no espaço e tempo.
1 comentário:
Sua alma é grande, e vc sabe! :)
Veronica
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