“Uma pessoa pode nunca associar
duas ideias de modo que mostrem o seu horror, o horror de cada uma delas, e
desse modo nunca o conhecer durante toda a vida. Mas também pode viver
instalada nele se tiver a má sorte de associar continuamente as ideias certas.
Por exemplo, aquela rapariga que vende flores diante da sua casa. Não há nada
de terrível nela, por si só não pode infundir terror. Pelo contrário. É até
muito atraente. E simpática e amável. Fez festas ao meu cão. Comprei-lhe estes
cravos (...). Mas aquela rapariga pode infundir horror. A ideia daquela
rapariga associada a outra ideia pode infundir horror. Não acredita? Ainda não
sabemos qual é a ideia que falta, a ideia adequada a que isso aconteça. O seu
par espantoso. Mas é certo que existe. Há-de haver. É questão de aparecer.
Também pode ser que nunca apareça. Poderia ser, sabe-se lá, o meu cão. A
rapariga e o meu cão. A rapariga com a sua longa cabeleira castanha e as suas
botas altas e as suas compridas pernas compactas e o meu cão sem a pata
esquerda (...). Que o cão ande comigo é normal. É necessário. É estranho, se
quisermos. Quer dizer, os dois juntos. Mas não há horror nisso. Se o cão
andasse com ela seria mais contencioso. Seria talvez horroroso. O cão não tem
pata. Se andasse com ela, certamente não a teria perdido numa rixa estúpida
depois de um jogo de futebol. Isso é um acaso. Ossos do ofício de um cão de um
homem coxo. Mas com ela talvez a tivesse perdido por outra razão. O cão não tem
pata. Com mais motivo. Com mais gravidade. Não por acaso. É difícil imaginar
aquela rapariga metida numa luta. Talvez a tivesse perdido por causa dela. Para
que este cão tivesse perdido a pata pertencendo àquela rapariga, teria talvez
de ter sido ela a amputar-lha. Como poderia perder a pata um cão bem protegido,
cuidado e querido por uma rapariga tão atraente e simpática que vende flores?
Essa ideia é horrível. É horrível a imagem daquela rapariga a cortar a pata ao
meu cão com as suas próprias mãos; vendo-o com os próprios olhos; assistindo a
tudo.”
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