Ando há mais de 2 meses a evitar escrever sobre um livro: Crónicas do Mal
de Amor, de Elena Ferrante. Elegi-o como próxima leitura numa tarde chuvosa da Feira do Livro de
Lisboa, alheia a todo o mistério do seu pseudónimo autoral mas a leitura havia
de se concretizar mais tarde, quando Agosto já agonizava em Lisboa.
Tenho andado a evitar escrever sobre o livro porque ele me derrubou por
completo. Já há algum tempo que assumi como evidência o facto de sofrer da
patologia da leitura identificatória; no entanto, nunca um livro me tinha
atingido com uma pancada tão seca e impiedosa.
Olga, a personagem principal da novela Os
Dias do Abandono, diz a certa altura: “E depois, gostava da escrita que nos
faz debruçar a cada linha e olhar para baixo, sentindo a vertigem da
profundidade, as trevas do inferno.” A frase aplica-se, com precisão afiada, à
escrita de Elena Ferrante. A sua leitura deu-me um mal-estar físico,
recordou-me a vertigem e pôs de novo o abismo a devolver-me o olhar. Sublinhei
passagens que se aproximam quase literalmente de algumas entradas diarísticas
minhas, dos meus pensamentos mais íntimos e temidos.
Como por exemplo: “Queria ter a certeza chã dos dias normais, embora
soubesse bem demais que persistia no meu corpo um movimento frenético noutro
sentido, um relâmpago, como se tivesse entrevisto no fundo de uma cova um
horrível insecto venenoso e todas as partes de mim própria continuassem tomadas
ainda de um impulso de recuo, agitando os braços, as mãos, escouceando. Tenho
de reaprender – disse para comigo – o passo tranquilo dos que pensam saber para
onde estão a ir e porquê.”
Ou este diálogo: “ - Foi muito horrível? – perguntou-me ele, embaraçado.
- Sim.
- O que é que te aconteceu naquela noite?
- Tive uma reacção excessiva que destruiu a superfície das coisas.
- E depois?
- Caí.
- E onde é que foste parar?
- A parte nenhuma. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia
nada.
Abraçou-me, manteve-me apertada contra o seu corpo por um momento, sem
dizer uma palavra. Estava a tentar comunicar-me em silêncio que sabia, graças a
um dom misterioso que lhe era próprio, tornar o sentido mais forte, inventar um
sentimento de plenitude e de alegria. Fingi acreditar e foi por isso que, ao longo
dos dias e meses que depois vieram, nos amámos devagar, serenamente.”
Tanto a segunda como a terceira novela, A
Filha Obscura, terminam com uma fresta de luz mas é claro que ambas as
personagens femininas são ainda cativas da obscuridade que as engoliu e que os
únicos estratagemas que têm para lidar com o alçapão por onde se esvaiu
o real são a mentira e o fingimento.
“Então, passa», disse ela.
«O quê.»
Fez um gesto para indicar uma vertigem, mas também uma sensação de náusea.
«O desnorteamento.»
Lembrei-me da minha mãe, disse:
«A minha mãe usava outra palavra, chamava-lhe caqueirada.»
Reconheceu o sentimento na palavra, fez um olhar de rapariguinha assustada.
«É verdade, escaqueira-te o coração: não consegues suportar estar contigo
mesma e tens certos pensamentos que não podes dizer.»
Depois voltou a perguntar-me, desta vez com a expressão meiga de quem
procura uma carícia:
«Mas mesmo assim, passa.»
Pensei que nem Bianca nem Marta tinham alguma vez experimentado fazer-me
perguntas como as de Nina, com o tom insistente em que ela me estava a
fazê-las. Procurei as palavras para lhe mentir dizendo a verdade.
«A minha mãe fez disso uma doença. Mas ela era de outro tempo. Hoje pode-se
viver bem, mesmo se não passar.»
Estou exactamente nesse ponto. A tentar dar fé no real e a habitar com
convicção a planura dos dias. Uns dias consigo, outros não. Gosto de acreditar
que sucederei na minha busca e que o meu corpo tornará a ser casa. E então
penso em Ulisses e lembro-me das palavras de Claudio Magris: “Talvez a minha
odisseia literária seja aquela que conta a viagem ao nada e o respectivo
regresso.”
Com essas palavras em mente, escolhi a minha odisseia para os
tempos de chuva: A Divina Comédia. E de novo, logo nas primeiras linhas,
o espelho identificatório:
“No meio do caminho em nossa
vida,
eu me encontrei por uma selva escura
porque a direita via era
perdida.
Ah, só dizer o que era é cousa dura
esta selva selvagem, aspra e
forte,
que de temor renova à mente a
agrura!
Tão amarga é, que pouco mais é morte;
mas, por tratar do bem que eu nela achei,
direi mais cousas vistas de tal
sorte.
Nem saberei dizer como é que entrei,
tão grande era o meu sono no
momento
em que a via veraz abandonei.”
Que, desta vez, a descensão aos infernos me permita um pequeno vislumbre do céu.