O outono anuncia-se sempre como o tempo que inaugura as maiores aventuras
literárias. Este ano, comecei pela leitura de Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgákov. E de imediato
fui cativada pelos 3 primeiros capítulos, magistrais na sua escrita e na sua estranheza.
Sim, é preciso assinalar a primeira
coisa estranha dessa horrível noite de Maio. Não apenas junto ao quiosque, mas
em toda a alameda paralela à Rua Málaia Bronnaia, não se via uma única pessoa. A
uma hora em que parecia que já não chegavam as forças nem para respirar, quando
o Sol depois de ter abrasado Moscovo, se escondera no nevoeiro seco algures
para lá da Sadovaia, não havia ninguém debaixo das tílias, ninguém sentado nos
bancos. A alameda estava deserta.
A
primeira impressão foi que me encontrava perante mais uma obra, que à
semelhança de uma certa literatura russa do século XIX, está abismada com a
morte de Deus e as suas implicações. Mas é impossível definir o livro por esse
prisma e sobretudo inútil tentar encapsulá-lo num tema ou estilo. Como afirma Samuel Thomas, «o romance pulsa de maliciosa energia e invenção. Por vezes, uma dura sátira da vida soviética, uma alegoria religiosa da dimensão do Fausto, de Goethe, e uma indomável fantasia burlesca, é uma obra de riso e terror, de liberdade e servidão - um romance que explode as verdades oficiais com a força de um carnaval descontrolado».
Há por ali de tudo, e o humor mais afiado coabita com a tristeza mais séria. O livro cativa sobretudo pelos vários registos polifónicos, com a narrativa a alternar entre dois tempos, a Jerusalém antiga e a Moscovo dos anos 30, combinando múltiplos géneros e técnicas narrativas, como o romance histórico, o suspense, e os tópicos fantásticos, para criar um conjunto de personagens, todas delirantes - o séquito do Diaboe o gato Behemot, Margarita, o Mestre, o atormentado Pôncio Pilatos e o seu fiel cão, entre outros. É uma narrativa louca, carnavalesca, que permite a junção do amor mais romântico a uma forte crítica mordaz aos costumes e, em particular, à sociedade literária moscovita da época.
Há por ali de tudo, e o humor mais afiado coabita com a tristeza mais séria. O livro cativa sobretudo pelos vários registos polifónicos, com a narrativa a alternar entre dois tempos, a Jerusalém antiga e a Moscovo dos anos 30, combinando múltiplos géneros e técnicas narrativas, como o romance histórico, o suspense, e os tópicos fantásticos, para criar um conjunto de personagens, todas delirantes - o séquito do Diaboe o gato Behemot, Margarita, o Mestre, o atormentado Pôncio Pilatos e o seu fiel cão, entre outros. É uma narrativa louca, carnavalesca, que permite a junção do amor mais romântico a uma forte crítica mordaz aos costumes e, em particular, à sociedade literária moscovita da época.
Ela trazia nas mãos umas flores
amarelas abomináveis, inquietantes. Só o Diabo sabe como se chamam, mas não sei
porquê, são as primeiras flores que aparecem em Moscovo. E aquelas flores
sobressaíam muito nitidamente contra o seu casaco preto primaveril. Trazia flores
amarelas! É uma cor funesta. (…) E o que me impressionou foi, não tanto a sua
beleza, mas a invulgar solidão dos seus olhos, uma solidão nunca vista! (…) O
amor surgiu à nossa frente, como um assassino que surge do nada num beco, e
atacou-nos aos dois simultaneamente! Como um raio, como um punhal finlandês!
(…)
- Bah! Mas esta é a casa dos escritores!
Sabes, Behemot, tenho ouvido dizer muitas coisas boas e lisonjeiras acerca
desta casa! Presta bem atenção a esta casa, meu amigo. É agradável pensar que
debaixo daquele tecto se oculta e amadurece uma infinidade de talentos.
- Como ananases numa estufa – disse
Behemot e, para melhor admirar a casa cor de creme com colunas, subiu para o
muro de betão que sustentava o gradeamento de ferro fundido.
- Absolutamente exacto – concordou Koroviev
com o seu companheiro inseparável. – E um delicioso pavor sobe-nos ao coração
quando pensamos que naquela casa amadurece presentemente o futuro autor de um
Dom Quixote, ou de um Fausto, ou diabos me levem, das futuras Almas Mortas!
Hem?
- É assustador pensar nisso –
confirmou Behemot.
A
certo ponto, já a leitura vai avançada, as narrativas historicamente distantes
começam a revelar as suas secretas passagens e suspeita-se que Bulgákov não faz
mais do que transfigurar a sua biografia nesta obra descomunal. Parece-nos que
os pavores estranhos do Mestre nos falam de uma censura mais dura e que a
cobardia é de facto o mais terrível dos defeitos, como constata Pôncio Pilatos.
Parece-nos que o voo de Margarita montada numa vassoura, primeiro sobre a
cidade de Moscovo e depois sobre o infinito do espaço, nos fala de uma
liberdade e ousadia capazes de redimirem, ainda que apenas literariamente, uma
vida profundamente humilhada e ofendida. E em geral, Margarita Nikolaevna, permitir-me-ei a audácia de lhe aconselhar a nunca ter medo de nada. Isso seria uma insensatez.
No
final, depois de várias peripécias, o escritor, o Mestre, e a sua amada são
recompensados com o repouso eterno, e há uma passagem em especial que faz jus à
epígrafe do Fausto de Goethe: - Mas há uma coisa com que tens de
resignar-te – objectou Woland, e um sorriso irónico desenhou-se-lhe na boca. –
Mal tu surgiste no telhado, cometeste logo um absurdo, e eu digo-te onde é que
está esse absurdo: está no teu tom. Dizes as palavras como se não reconhecesses
a existência das sombras e do mal. Não quererás ter a bondade de pensar nesta
questão: de que serviria o teu bem se não existisse o mal, e que aspecto teria
a terra se dela desaparecessem as sombras? Pois as sombras são produzidas pelos
objectos e pelas pessoas. Aqui está a sombra da minha espada. Mas há também as
sombras das árvores e de todos os seres vivos. Não quererás tu despir todo o
globo terrestre, varrendo da sua superfície todas as árvores e tudo o que é
vivo, por causa da tua fantasia de te deleitares com a luz pura? És um tolo.
E
novamente, vida e literatura coincidem. Que eu saiba também aceitar as minhas
sombras. Pois, afinal, o que importa é não ter medo. E «chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo!»
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