domingo, 19 de junho de 2016
espelho meu, espelho meu...
«Ardentemente cobiçados, não ultrapassando o tamanho de um prato, os espelhos são durante muito tempo o símbolo do luxo aristocrático, o instrumento das aparências. Servindo de traço de união entre natura e cultura, educam o olho e dão apoio às lições de boas maneiras. Do ver-se ao espelho decorrem não só o gosto pelo adorno e a atenção aos sinais da representação e da hierarquia social, como também uma nova geografia do corpo, que revela imagens desconhecidas – de costas, de perfil – e estimula o sentimento de pudor e de autoconsciência. Durante a Revolução Francesa, uma grande dama, quando a vêm deter a casa, não pensa em levar consigo para a prisão senão dois objectos: "Instintivamente, peguei num pequeno espelho com uma moldura de cartão e num par de sapatos novos." Na indigência do cárcere, a sua imagem é o único bem que ela possui, e esta derradeira coqueteria representa também o ser senhora de si própria.»
sábado, 18 de junho de 2016
A papoila e o monge
VIDA MONÁSTICA
(...)
Os que se assemelham a nada
assemelham-se
a Deus
assemelham-se
a Deus
(...)
Deus apaga
o nosso rasto
como se apagasse uma vela
o nosso rasto
como se apagasse uma vela
(...)
Primeiro dia de Primavera:
que distante me parece
o inverno
que distante me parece
o inverno
(...)
A noite escuta com a mesma indiferença
a toada solitária do monge
e a canção rouca das prostitutas
a toada solitária do monge
e a canção rouca das prostitutas
(...)
Debruçado na tarde
escuto o silvo sombrio da
solidão
escuto o silvo sombrio da
solidão
(...)
Deus está vazio
de todas
as suas obras
de todas
as suas obras
(...)
Toda a noite o gelo tombou
com o ruído
dos sonhos quebrados
com o ruído
dos sonhos quebrados
(...)
Perguntas quanto tempo deves rezar?
a papoila na encosta
é vermelha sempre
a papoila na encosta
é vermelha sempre
(...)
O verão
ensina a mesma prece
à papoila e ao monge
ensina a mesma prece
à papoila e ao monge
(...)
José Tolentino Mendonça
Alguém pergunta o que é o amor. Diremos:
«A mãe, vestida de azul, estava
terrivelmente angustiada. Esperava um
sinal do jardim e o caminho não estava livre. Ninguém poderia entrar enquanto o
seu marido estivesse em casa. Ah, este maridos, este homem de quarenta e um
anos e já calvo! Que mau pensamento o teria posto tão pálido nessa tarde,
deixando-o pregado na cadeira, imóvel, inflexível e com o olhar fixo no jornal?
Ela não tinha um minuto de
descanso, eram onze horas. As crianças já estavam na cama há muito tempo, mas o
marido não se ia embora. O que aconteceria se o sinal soasse, se a porta se
abrisse graças àquela chavinha e os dois homens se encontrassem, face a face,
olhos nos olhos? Não ousava prosseguir o seu pensamento.
Franca pôs-se no canto mais
escuro da sala, torceu as mãos e finalmente disse:
– São onze horas. Se tens de ir
ao clube, é melhor ires já.
Ele levantou-se de imediato,
lívido, e abandonou a sala, e depois a casa.
No jardim, parou e ouviu um
apito, um breve sinal. Depois, passos na gravilha, uma chave na fechadura e
duas sombras projectam-se nas cortinas da sala.
Conhecia bem o sinal, os passos e
as duas sombras na cortina. Não era nada de novo.
Seguiu para o clube. Estava aberto,
havia luz nas janelas, mas não entrou. Durante dois quartos de hora andou para
cima e para baixo pelas ruas e depois, em frente ao jardim, durante dois
intermináveis quartos de hora. «Esperemos mais um quarto de hora», pensou e
prolongou-os de mais dois. Depois entrou no jardim, subiu as escadas e tocou à
porta.
Veio a criada e abriu, pôs a
cabeça de fora e disse:
– A senhora já está… – Subitamente calou-se, ao ver com quem estava
a falar.
– … já está deitada. Está bem. Quer
dizer à senhora que o seu marido chegou a casa?
A rapariga partiu. Bateu à porta
do quarto da senhora e transmitiu a ordem através da porta fechada:
– Venho dizer que o senhor
chegou.
A senhora pergunta de dentro:
– O que diz, o senhor chegou? Da
parte de quem o diz?
– Da parte do senhor, está em
casa.
Ouve-se então um lamento desesperado
dentro do quarto, uma conversa apressada, em voz baixa, uma porta que se aberta
e que se fecha. Depois tudo fica tranquilo.
O senhor entra, a senhora vai ao
seu encontro, com a morte no coração.
– O clube estava fechado – diz ele rapidamente, com compaixão e
piedade. – Mandei a criada para não te
meter medo.
Ela cai numa cadeira, aliviada. O
seu bom coração extravasa e pergunta ao marido como está de saúde:
– Estás muito pálido.
Aconteceu-te alguma coisa? O teu rosto está muito alterado.
– Não, estou a sorrir. A partir
de hoje, será a minha maneira de sorrir. Quero que esta careta seja o meu
sorriso.
Ela ouve estas breves, roucas
palavras e não o compreende. O que pretende ele dizer?
Mas, subitamente, ele abraça-a
com uma força terrível e murmura-lhe ao ouvido:
– E se lhe puséssemos os cornos,
a ele, que já saiu.. se lhe puséssemos os cornos?
Ela dá um grito e chama a criada.
Ele deixa-a com um sorriso calmo e seco, abrindo muito a boca e batendo com as
mãos nos joelhos.
De manhã, o coração da senhora
prevalece de novo e diz ao marido:
– Ontem à noite, tiveste um
comportamento estranho. Já passou, mas ainda estás pálido.
– Sim – responde ele, – é cansativo ter graça na
minha idade! Nunca mais o farei.»
«Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho.»
«Até agora pude fazer-lhe compreender tudo... talvez apenas porque até esse momento eu me compreendi a mim mesmo... e, como médico, consegui sempre fazer um diagnóstico do meu próprio estado. Mas, a partir desse momento, fui assaltado como que pela febre... perdi completamente o domínio de mim próprio... ou antes, eu bem sabia que tudo quanto fazia era insensato, mas não podia ter mão em mim... Não me compreendia... não tinha senão uma idea fixa: atingir o meu fim... De resto, ouça: talvez, apesar de tudo, eu lhe consiga fazer compreender... O senhor sabe o que é o amok?
– Amok?... Creio recordar-me... é uma espécie de embriaguez... entre os malaios.
– É mais do que embriaguez... é a loucura, uma espécie de raiva humana, literalemente falando... uma crise de monomania assassina e insensata, à qual uma intoxicação alcóolica não se pode comparar. Eu próprio, durante a minha permanência ali, estudei alguns casos – quando se trata dos outros, a gente é sempre perspicaz e positiva – mas sem nunca poder descobrir o medonho segredo da sua origem... A causa é, sem dúvida, o clima, esta atmosfera densa e asfixiante que oprime os nervos, como uma trovoada, até que eles acabam por descarregar...»
terça-feira, 14 de junho de 2016
Subscrever:
Mensagens (Atom)