Descobri uma grande escritora portuguesa, lastimosamente
olvidada: Graça Pina Morais.
Li A Origem e
pasmei perante a sua mestria na composição da densidade psicológica das
personagens que habitam a Casa. Arquétipos de uma ruralidade ainda viva, todas
tão humanas e propensas à fatalidade, todas tão amáveis apesar das suas
fragilidades. A atmosfera e as personagens recordaram-me um pouco o realismo
mágico de García Márquez. Mas só um pouco, pois ainda que apresentada de uma
forma fantástica, o que prevalece nestas páginas é uma viagem ao centro da alma
humana, naturalmente rica em sombras e declives.
Os comentários narrativos revelam uma inteligência
emocional superior, embora por vezes mais descuidada do estilo, e o modo
clarividente como Graça Pina Morais analisa e desmonta a dualidade do artista,
na figura de João, só pode indicar que esta escritora viveu esplendorosamente
toda a vida do espírito artístico.
Uma
das características da Casa era a sua profusão de divisões inúteis. Tinha, pelo
menos, umas quatro salas de estar, onde, aliás, ninguém estava: aquela era uma
dessas. Compunham o mobiliário uma velha mobília de verga e uma cadeira de
balanço, que constituía o encanto de todas as crianças que haviam crescido na
Casa. Numa das paredes estava pendurado um grande espelho, com uma ingénua
pintura num dos cantos, que representava uma série de patos nadando num lago
azul berrante.
Quando
Catarina entrou, João mirava-se no espelho, facto que lhe acontecia com
frequência sempre que deparava com uma superfície espelhada, não porque se
achasse particularmente bonito, mas porque gostava de se avaliar. Catarina
parou e João lançou-lhe um olhar irritado, por ter sido surpreendido em
intimidade consigo mesmo. Não disse uma palavra. Através da porta encostada,
ouviam-se as vozes das tias de João, que chegavam até eles em surdina, vindas
da sala de jantar.
–
Estavas a ver os patos ou estavas a admirar-te? – perguntou Catinha.
–
Estava a admirar-me, sem admiração, é claro! – respondeu ele, quase colérico.
–
Não te aflijas, rapaz, és bonito.
–
Não sou!
–
És – gritou convicta Catarina, que
continuou, depois, numa voz baixa e misteriosa: – Torna a virar-te para o
espelho, João.
–
Que idiotice; para quê?
–
Vais ver. Mas primeiro juras uma coisa: só te voltas para mim quando eu der
ordem. Juras?
–
Juro – prometeu João, curioso. E virou-se
para a superfície brilhante. Não havia mais nada além dos patos.
De
repente, João abafou um grito de espanto. No espelho surgiu Catarina, despida;
a rapariga segurava com os dois braços afastados as bandas do roupão aberto.
Tinha os olhos baixos, quase fechados, a cabeça inclinada num movimento tímido
e gracioso. O corpo de Catarina possuía a perfeição e a pureza da adolescência
e havia nele uma espécie de espiritualidade comovente, que chegava a angustiar,
por se sentir quanto era transitória. Apesar de despida, com a cara incendiada,
a boca timidamente contraída, desprendia-se dela uma grande frescura, uma
imensa pureza.
(…)
Deitado,
João, à força de esperar o sono com impaciência, acabou por sentir-se muito
doente. Todas as ideias se baralhavam na sua cabeça. Pensava vagamente em casar
com Catarina, mas Catarina era só uma mulher, e para o cérebro excitado do
rapaz, uma mulher era pouco. Queria todas as mulheres do mundo. Milhares de
expressões de amor, de abandono, em rostos desconhecidos, corriam na sua
imaginação, e todas tinham o juvenil corpo despido de Catarina. Caras sombrias,
alegres, raivosas, rodeadas de cabeleiras fulvas e negras, encimavam o pescoço
gracioso e inclinado sobre o ombro nu de Catarina, e assim, num crescendo de
excitação raivosa e doentia, João acabou por possuir-se a si mesmo.
Ficou
exausto, deitado de costas e coberto de suor. Não tinha a sensação de ser ele,
nem sequer a consciência do próprio corpo, sentia-se transformado num monstro
viscoso e sombrio, condenado à mais intransponível das solidões. Adormeceu mergulhado
numa cinzenta e desolada tristeza.
Teve
um sonho pavoroso. O mundo despovoara-se e não havia o mais pequeno vislumbre
de vida sobre a Terra; João, desesperado e sozinho no grande universo, amava-se
a si mesmo.
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