sábado, 27 de fevereiro de 2016

Vós, os mesquinhos e os tacanhos de espírito


Nunca tinha lido nada de Flannery O’Connor. Durante seis anos, olhei de tempos a tempos a lombada de UM BOM HOMEM É DIFÍCL DE ENCONTRAR, concordante e de sorriso irónico, mas só recentemente me atrevi a tirá-lo da estante e a lê-lo.

Não posso dizer que tenha sido uma leitura feliz – os dez contos parecem retirados de um velho testamento sulista, como um catálogo de pecados capitais e outros menos capitais mas nem por isso menos fatais. A teimosia, a soberba, a luxúria, a avareza, a cobiça, o egoísmo e o racismo repetem-se nas várias histórias e também as personagens se assemelham de uma para outra. As proprietárias das fazendas tendem a ser mulheres sozinhas, de espírito tacanho e contraído, rodeadas por uma empregada ou amiga quadrilheira e por uma filha embirrenta e antipática. Na maioria das vezes, a desgraça chega anunciada por um visitante estranho que se apresenta como pessoa simples e afável (oh, que um deus qualquer nos mantenha a salvo dos simples e da «gente sã do campo»).

Os afectos produtivos ocupam pouco espaço e todos parecem infectados por ideias fixas, quais mulas arreigadas nas suas crenças e preconceitos. Não simpatizamos com ninguém em particular e pressentimos a desgraça – as situações descambam nos contos de O’Connor e de que maneira! -, vertiginosa e inclemente que se aproxima. Ainda assim, imploramos alguma misericórdia mas é tarde demais: «já nada é como costumava ser, o mundo está quase podre». No meio de tantas desgraças, somos de quando em brindados com frases assombrosas: «Sou tão bom como tu em qualquer dia da semana» ou «Teria sido uma boa mulher se tivesse estado lá alguém para a matar em cada minuto da vida dela.»

Todos os contos são geniais – Flannery O’Connor é mestra na sugestão de atmosferas e psiques – mas a minha predilecção vai para dois deles, O Preto Artificial e A Gente Sã do Campo. Em ambos, o castigo abate-se sobre a soberba das personagens. O Preto Artificial é único conto com um final mais luminoso, com a sobranceria do avô e do neto a serem derrotados pela misericórdia.

Olhavam para o preto artificial como se se confrontassem com um mistério profundo, um monumento à vitória de outrem que os reunia na sua derrota comum. Ambos podiam sentir o efeito do mistério dissolvendo os seus antagonismos como um acto de misericórdia. Mr. Head nunca soubera antes o que era o sentimento de misericórdia porque sempre fora demasiado bom para precisar dela, mas reconheceu-a imediatamente. Olhou para Nelson e compreendeu que devia dizer uma coisa qualquer que demonstrasse que a sua sabedoria não desaparecera, e no olhar que recebeu do rapaz identificou uma necessidade imensa dessa garantia. Os olhos de Nelson pareciam implorar-lhe que explicasse de uma vez por todas o mistério da existência.
Mr. Head abriu a boca para fazer uma declaração solene e ouviu a sua própria voz a dizer: «Não têm cá pretos que cheguem, precisam de criar um preto artificial.»
Depois de um segundo o rapaz acenou afirmativamente com um estranho tremor na boca e disse: «Vamos para casa senão ainda nos perdemos outra vez.»


Em suma, Fannery hits you hard!

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