Nunca tinha lido nada de Flannery O’Connor. Durante
seis anos, olhei de tempos a tempos a lombada de UM BOM HOMEM É DIFÍCL DE
ENCONTRAR, concordante e de sorriso irónico, mas só recentemente me atrevi a
tirá-lo da estante e a lê-lo.
Não posso dizer que tenha sido uma leitura feliz – os
dez contos parecem retirados de um velho testamento sulista, como um catálogo
de pecados capitais e outros menos capitais mas nem por isso menos fatais. A
teimosia, a soberba, a luxúria, a avareza, a cobiça, o egoísmo e o racismo
repetem-se nas várias histórias e também as personagens se assemelham de uma
para outra. As proprietárias das fazendas tendem a ser mulheres sozinhas, de
espírito tacanho e contraído, rodeadas por uma empregada ou amiga quadrilheira
e por uma filha embirrenta e antipática. Na maioria das vezes, a desgraça chega
anunciada por um visitante estranho que se apresenta como pessoa simples e
afável (oh, que um deus qualquer nos mantenha a salvo dos simples e da «gente
sã do campo»).
Os afectos produtivos ocupam pouco espaço e todos
parecem infectados por ideias fixas, quais mulas arreigadas nas suas crenças e
preconceitos. Não simpatizamos com ninguém em particular e pressentimos a
desgraça – as situações descambam nos contos de O’Connor e de que maneira! -,
vertiginosa e inclemente que se aproxima. Ainda assim, imploramos alguma
misericórdia mas é tarde demais: «já nada é como costumava ser, o mundo está
quase podre». No meio de tantas desgraças, somos de quando em brindados com
frases assombrosas: «Sou tão bom como tu em qualquer dia da semana» ou «Teria
sido uma boa mulher se tivesse estado lá alguém para a matar em cada minuto da
vida dela.»
Todos os contos são geniais – Flannery O’Connor é
mestra na sugestão de atmosferas e psiques – mas a minha predilecção vai para
dois deles, O Preto Artificial e A Gente Sã do Campo. Em ambos, o castigo
abate-se sobre a soberba das personagens. O
Preto Artificial é único conto com um final mais luminoso, com a
sobranceria do avô e do neto a serem derrotados pela misericórdia.
Olhavam
para o preto artificial como se se confrontassem com um mistério profundo, um
monumento à vitória de outrem que os reunia na sua derrota comum. Ambos podiam
sentir o efeito do mistério dissolvendo os seus antagonismos como um acto de
misericórdia. Mr. Head nunca soubera antes o que era o sentimento de
misericórdia porque sempre fora demasiado bom para precisar dela, mas
reconheceu-a imediatamente. Olhou para Nelson e compreendeu que devia dizer uma
coisa qualquer que demonstrasse que a sua sabedoria não desaparecera, e no
olhar que recebeu do rapaz identificou uma necessidade imensa dessa garantia.
Os olhos de Nelson pareciam implorar-lhe que explicasse de uma vez por todas o
mistério da existência.
Mr.
Head abriu a boca para fazer uma declaração solene e ouviu a sua própria voz a
dizer: «Não têm cá pretos que cheguem, precisam de criar um preto artificial.»
Depois
de um segundo o rapaz acenou afirmativamente com um estranho tremor na boca e
disse: «Vamos para casa senão ainda nos perdemos outra vez.»
Em suma, Fannery
hits you hard!
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